A coerência é a chave do bom estudo

O Caminho De Guermantes
3 min readJan 21, 2021

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Até que ponto o conhecimento deve ser alheio à consciência individual?

Jacques-Louis David, The Death of Socrates, 1787

Eu poderia te perguntar agora: quantos livros você leu em 2020? Mas a pergunta vai ser diferente: valeu a pena ter lido tudo isso?

Uma das principais características da tão exaltada Ciência Moderna é a não necessidade de coerência entre teoria e ação. Ou seja: aquilo que se aprende não precisa servir ao leitor, ou o influenciar. Pode-se estudar qualquer coisa, em qualquer época, durante um mês ou durante a vida toda, e nada disso precisa ser aplicável à vivência diária de quem estuda. Somos meros observadores, analistas talvez, de fenômenos distantes e impessoais.

Isso não é restrito às Ciências Naturais, mas se estende também à Literatura e à Filosofia. A atividade filosófica é muitas vezes entendida, hoje, como mera disciplina acadêmica, reduzida a termos, conceitos e chavões utilizados ao bel-prazer do estudante, que não precisa se preocupar com a coerência da teoria em relação à sua vida diária, já que não há uma Verdade a ser alcançada, nem um modelo a ser seguido. Mas nem sempre foi assim.

Na Antiguidade, a Filosofia era uma atividade prática, não apenas teórica. Talvez pelo fato de seu objeto de estudo ser extremamente intrínseco ao estudante, porque é, em essência, ele próprio. Pode-se analisar a natureza, os materiais, as letras, o corpo humano, a história do mundo, sem necessariamente estar envolvido diretamente com esses conceitos. Mas assuntos como a consciência, o princípio e o fim, o sofrimento, a Verdade, mesmo tendo como pretensão a formação de “padrões” de pensamento, são impossíveis de serem desvinculados da própria vivência de quem estuda. O estudante, além de observador, é objeto dessas investigações e sua ferramenta é unicamente seu próprio pensamento. Todo estudo, portanto, teria um fundamento na realidade própria do estudante: suas descobertas não estariam alheias à sua vivência, mas teriam para si uma importância de nível existencial.

Essa síntese inseparável da consciência pessoal com o conteúdo do conhecimento é precisamente o que definia a Filosofia, na Antiguidade. A sociedade romana, por exemplo, concedia ao filósofo o papel quase sacerdotal de orientar, corrigir e guiar os cidadãos à vida digna e virtuosa — as próprias Meditações de Marco Aurélio eram uma expressão disso. Na sociedade grega, Sócrates falava da autotranscendência: “Conhece-te a ti mesmo”, para saber como modificar tua relação com o próximo, com o mundo e contigo mesmo, e chegar, enfim, à Verdade. O conhecimento não era externo, impessoal ou estatístico, mas era um ditame da própria condição existencial; isso exigia sacrifício, abnegação, renúncia — Sócrates renunciou à própria vida. Entendendo o funcionamento da alma humana, seria possível constituir a ciência prática, que conduziria o homem à felicidade.

O estudo, por esse ponto de vista, está seguramente mais longe do perigo de se tornar superficial. É muito mais que um conjunto de páginas, uma miríade de abordagens, uma análise distante e padronizada de eventos externos, independentes do sujeito. A Filosofia não é uma sequência de “escolas filosóficas”, a Religião não é o mero registro de crenças, a Literatura não é um entretenimento ou apenas “um reflexo da sociedade da época”. Todo conhecimento, se bem conduzido, tem um fim último que é inseparável da conduta humana diária.

Quão perto você está daquilo que estuda? Qual o valor real das suas horas gastas em leituras — para onde elas estão te levando? Neste ano, não se iluda: com muitos livros nem sempre se faz um bom leitor.

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