A dualidade Homem-Máquina em Metrópolis
Um livro que trata sobre o advento das máquinas e sua possível superação ao homem naturalmente vai exprimir uma reflexão sobre o que é a essência humana, e quais as condições da nossa existência — tema por tantas vezes abordado no nosso projeto-. O enredo do livro é simples, mas envolve um conceito mais complexo. Metrópolis, em termos concretos, é uma cidade comandada sob um regime autoritário, com um sistema de produção à base de máquinas que funcionam sob a exploração e devoramento de seres humanos. Mas Metrópolis, em termos imateriais, é uma entidade com suas próprias “ações”, como um ser concreto. A cidade tem suas necessidades, desejos, humor e até formas de se comunicar.
O livro tem um apelo muito forte à percepção do leitor. Nada é descrito de maneira direta e o leitor precisa ser também um interlocutor, para interagir com a obra e fazer parte dos acontecimentos. Sem isso, ele corre o risco de ter uma leitura mecânica e se tornar mais uma máquina da cidade, sem perceber as sutilezas e argumentos da autora à autonomia humana. Na maioria das distopias nós vemos logo ao início do livro uma descrição ou explicação sobre o contexto do mundo: sua política, sua economia, formas de alienação das massas… Em resumo, os traços que caracterizam a obra como uma distopia. Em Metrópolis, temos o contrário. A primeira cena é a pura representação dos profundos anseios humanos em uma encenação majestosa à uma peça de órgão que ressoa poderosamente na catedral da cidade, a última estrutura que remonta aos tempos do humanismo. Ao som do órgão, tocado por ele mesmo, o personagem mergulha na própria psique em uma dimensão onírica repleta de simbologias, presságios e revelações próprias do inconsciente humano. E desaba.
“Suas mãos tiravam música do caos daquelas notas, lutando com as vibrações do clangor e revolvendo até seu íntimo.
Estava próximo das lágrimas, como nunca antes na vida, e, em um desamparo abençoado, ele se rendeu à umidade ardente que o cegava.”
Essa inversão é importante pois demonstra qual o foco da obra. A distopia por si só não é o aspecto principal, como em outras distopias. 1984 de George Orwell é completamente focado no contexto, no sistema e nas repressões governamentais. Laranja Mecânica é voltado para as consequências da intervenção dos métodos científicos sobre o comportamento humano. Em Admirável Mundo Novo, os seres humanos são criados em laboratórios e psicologicamente moldados em uma linha de produção para trazer à tona o debate acerca do utilitarismo e do livre arbítrio. Dentre outros exemplos. Diferentemente, Metrópolis é voltado para o sentimento humano, acima de qualquer simples dualidade homem-máquina comum à ficção científica no geral. Por isso, o simples fato de começar com esse trecho já revela toda uma lógica e posicionamento por trás do livro.
Do outro extremo da dualidade, a entidade Metrópolis é um ser praticamente instintivo. Apesar de constituída por máquinas, seus posicionamentos são de um mero animal, entregue à respostas automáticas, buscando se alimentar, crescer e exercer seu poder. Uma aberração. É a personificação de um ímpeto sem propósito.
“Aquela cidade de máquinas, aquela cidade de sobriedade, aquela maníaca do trabalho noturno, buscava o poderoso contraponto à obsessão do trabalho diário — que essa cidade, em suas noites, perdia-se como uma louca, como alguém totalmente insano, na embriaguez de um prazer que levava às alturas e lançava a todas as profundezas, imensamente contente e imensamente devastadora.”
Perceba que em nenhum momento foi citado nesse texto a estrutura da cidade, o funcionamento das máquinas, a divisão de classes, a descrição dos personagens ou qualquer outra coisa semelhante. Nessa obra, isso não é necessário! E esse é seu ponto forte.
Muitas vezes nos acostumamos a ler acontecimentos, enredo, descrições, críticas, postulados, mas não conseguimos ler por trás do texto. Não falo da conhecida “moral” do livro, ou da mensagem que ele carrega. Falo do posicionamento do livro frente aos dilemas que ele mesmo cria e expõe. O que Thea faz em Metrópolis é condensar toda a sua compreensão de homem em sua escrita. Não é em um diálogo ou em uma descrição que você absorve esses conceitos. É na própria construção da narrativa. É na intervenção do narrador, na palavra que é escolhida frente a tantos outros sinônimos que poderiam ter sido usados, nas figuras de linguagem… Diversas vezes Metrópolis é comparada à Natureza, como uma ambição da Cidade, mas que só é percebida pelo leitor pelo esmero da autora em fazer uma rápida analogia. Ao comparar a voz da cidade ao tenebroso e onipresente som de uma tempestade em um mar torrencial, como acontece em um dos capítulos do livro, Thea nos dá não só um referencial imagético para imaginar essa voz, mas também um posicionamento ideológico inerente à entidade Metrópolis de tentar se elevar a patamares sobrehumanos. Nesse ponto, a analogia deixa de ser uma mera descrição e passa a constituir um ponto chave para o argumento da autora. A estrutura da cidade é irrelevante para o cerne da obra: é uma simples ambientação para justificar a mensagem do livro, não é uma mensagem por si só, diferente das distopias comuns já citadas, onde o peso do sistema e estrutura criadas são muito maiores para a compreensão da mensagem carregada em suas páginas. É a partir desses posicionamentos que a obra retrata a dualidade homem-máquina, e a obra está cheia desses exemplos.
Sem nem falar sobre o enredo da obra, já trouxe algumas das reflexões que tomaram conta da minha mente no processo da leitura. Tenho certeza que esse desfoque dos acontecimentos, diálogos e descrições podem auxiliar você, leitor, a ter uma compreensão mais abrangente em termos de visão de mundo e aprofundada em termos de conteúdo nas tuas leituras.
Metrópolis foi só um exemplo.