A Justiça ideal

O Caminho De Guermantes
4 min readNov 26, 2020

--

Um diálogo entre Direito, Literatura e Filosofia

Eugene-Ernest Hillemacher — Oedipus and Antigone Exiled to Thebes 1843,

“Nada está na política de um país que não esteja primeiro na sua literatura”, esta célebre frase do escritor austríaco Hugo Von Hofmannsthal representa, ainda que não pretenda ser uma tese científica e empírica, o valor e a importância da literatura nas ideias que permeiam o imaginário coletivo da sociedade e, portanto, a sua realidade fática.

Tal citação poderia ser parafraseada de diversas maneiras, mas destaco que a substituição do termo Política por Direito ou Arranjo jurídico também comporia uma afirmação muito salutar, tendo em vista a íntima relação que o Direito e a literatura assumiram ao longo da história. Para comprovar isto, pode-se destacar obras como O Processo de Franz Kafka que mostra a realidade, tão atual, da burocracia do judiciário, O Mercador de Veneza de Shakespeare que fala muito da teoria dos contratos, ou ainda os livros de George Orwell e outras tantas obras que transpõem os limites da história e nos mostram profundos debates jurídicos.

Em verdade, essas obras literárias carregam em si grandes questões filosóficas que servem como base para qualquer ordenamento jurídico e que são debatidos há milhares de anos. O que é justiça? O que é lei? Qual o papel do Direito? Estas são questões antiquíssimas que geram debates até hoje, debates estes que são trazidos à tona por meio da literatura.

Tendo em vista tudo o que foi até então exposto, torna-se de grande importância promover e fomentar o diálogo entre o Direito, a Literatura e a Filosofia. Para iniciar qualquer debate entre estes três campos do conhecimento deve-se partir do tema que está na sua interseção: a ideia de Justiça.

Definir Justiça é uma tarefa muito árdua que foi objeto, por exemplo, do diálogo dA República de Platão e outras tantas obras filosóficas. Todavia, ao falarmos de justiça no âmbito de convivência social, desconheço definição melhor que a do grande jurista brasileiro Miguel Reale, que sinteticamente coloca a Justiça como “a realização do bem comum”. Para compreender melhor o que ele quer dizer com isso, devemos entender um segundo conceito chave: O que é bem comum? O próprio Miguel Reale nos responde que “o bem comum não é a soma dos bens individuais, nem a média do bem de todos; o bem comum, a rigor, é a ordenação daquilo que cada homem pode realizar sem prejuízo do bem alheio, uma composição harmônica do bem de cada um com o bem de todos.”

Com essas duas definições importantíssimas surge outro ponto primordial em qualquer debate dessa espécie que é o papel que o Direito deve assumir frente a esse ideal de Justiça. O Direito, tomado como “ordenação bilateral, atributiva das relações sociais na medida do bem comum”, definição também de Miguel Reale, tem uma íntima relação com o que entende-se por Justiça, sendo este (o Direito) um imperativo para a concretização justamente deste fim (a Justiça).

Dessa forma, observamos o Direito posto/positivado como algo limitado que encontra uma limitação intrínseca que independe do simples arbítrio do soberano, pois encontra sua legitimação justamente na concretização do bem comum. Essa limitação foi identificada na tradição filosófica como Lei Natural. Essa ideia está amplamente presente na Trilogia Tebana do autor grego Sófocles, em especial na peça Antígona que traz justamente essa discussão entre a lei natural e a lei positivada, isso pode ser exemplificado no discurso que a personagem principal, Antígona, dirige ao tirano Creonte por este impor um édito, na concepção de Antígona, injusto. Assim diz a protagonista: “eu não creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém sabe desde quando vigoram!”.

Essa concepção de um Direito que não se submete à vontade humana, mas que, ao contrário, é a ordenação (imperativo) da razão para o bem comum encontra grande amparo na tradição filosófica clássica e pode ser averiguada na fala de Santo Tomás de Aquino na Suma teológica, que fala que “toda lei humanamente imposta tem tanto de razão de lei quanto deriva da lei da natureza. Se, contudo, em algo discorda da lei natural, já não será lei, mas corrupção de lei.”

Tendo por análise essa perspectiva jusnaturalista, observamos justamente que a Justiça é o último limiar de legitimação do Direito positivo e assim compreendemos o que é dito por Santo Agostinho: “Onde não há verdadeira justiça não pode haver direito” sob pena de termos uma “Lei pervertida” como exclamado pelo economista francês Frédéric Bastiat.

--

--

O Caminho De Guermantes
O Caminho De Guermantes

Written by O Caminho De Guermantes

Literatura | Filosofia | Psicologia | Cultura

No responses yet