As Metamorfoses da Psicologia
Um ensaio sobre a relação entre a obra-prima de Kafka e a reforma manicomial
“Als Gregor Samsa eines Morgens aus unruhigen Träumenerwachte, fand er sich in seinem Bett zu einem ungeheueren Ungeziefer verwandelt.” (Franz Kafka — Die Verwandlung)
A Reforma Psiquiátrica Brasileira, inspirada pelas campanhas de desinstitucionalização italianas, permitiu uma formulação crítica às práticas de violência física e simbólica cometidas em manicômios, redirecionando, assim, os órgãos da saúde mental para um novo caminho que, a grosso modo, busca a cidadania do louco. Entretanto, apesar dos supostos avanços do fazer clínico no Brasil, encontramos alguns problemas que persistem e que requisitam reflexões críticas. E são alguns deles: a falta de arcabouço teórico dos profissionais que realizam os novos serviços, pois não basta a criação de novas técnicas, mas também precisamos de trabalhadores da saúde que tenham uma visão histórica para que haja a constituição de novas políticas éticas, humanizadas e inclusivas dentro do serviços substitutivos; o outro problema que nos ocorre é a persistência da lógica psiquiátrica que se manifesta no fenômeno do Manicômio Mental, este último que se trata do ideal do louco encarcerado que povoa o imaginário social, e que não permite a liberdade do suposto louco mesmo que os manicômios já não mais existam, ou seja, não adianta destruir as estruturas físicas se não desconstruirmos o ideal perverso que povoa a imaginação coletiva.
Para combater o exclusivismo que a psiquiatria tomou para si ao tratar das questões psicológicas, e por consequência, combater também algumas abordagens que tendem a ser nocivas ao sujeito em vulnerabilidade, temos que deixar de lado a visão descritiva/classificatória e tomar uma perspectiva explicativa — a exemplo da Psicanálise que cria um esforço para, por meio da escuta, compreender as várias esferas do sujeito e suas estruturas. Vale ressaltar que, a princípio, não há nada de descomedido com a prática classificatória, entretanto, apesar de funcionar nas ciências em geral, ao tratar de sujeitos, não conseguimos chegar à mesmo conclusão diagnóstica, tendo em vista que os elementos dos indivíduos não encontram propriedades empiricamente representáveis. Essa conscientização é de suma importância para que os psicólogos (independentemente de suas abordagens) não atuem na lógica que os tornem representantes da psiquiatria, assim, replicando práticas como a da intensa medicalização.
Para entendermos melhor as relações e diferenças entre a escuta da psicanálise e da psiquiatria, tomaremos como “estudo de caso” a narrativa de Franz Kafka em sua obra A Metamorfose. A novela conta sobre os sofrimentos de Gregor Samsa, um jovem caixeiro viajante que, ao acordar certo dia, se encontra transformado em um inseto. Percebe-se desde o início que Kafka evidencia o mal-estar, mas também des-louca esse mesmo mal-estar ao transformar (metamorfosear) essa angústia em literatura, tornando essa última em uma ferramenta que nos permite nos apropriar e pensar criticamente acerca dessa loucura. Ainda sobre a visão de homem idealizada por Kafka, podemos visualizar uma linha de raciocínio e linguística muito próxima da Psicanálise. Na epígrafe deste ensaio está escrito em alemão (não de forma gratuita) o primeiro trecho de A Metamorfose, para nos chamar a atenção aos termos utilizados pelo autor ao definir o estado inicial de Samsa. É narrado que o personagem acorda, em uma manhã, perturbado (unruhigen), ou em tradução literal “não-calmo”. Ainda é dito que ele tinha uma aparência monstruosa (ungeheueren), em livre tradução, “não-saudar”, e assim por diante. O fato é que o prefixo un está presente durante a obra para passar a ideia de não pertencimento, deslocamento, de desabrigo e mal-estar. Franz Kafka, além de perceber o mal- estar da sociedade (Unbehagen in der kultur), percebe também o desconforto social frente ao diferente, ao outro ou, como definido por Sigmund Freud, ao infamiliar (Unheimlich), termo esse que segue a estrutura usada por Kafka e utiliza do prefixo negativo un. Esta noção de desconforto pode nos levar a duas saídas: criar um esforço de compreensão do sujeito ou transformá-lo em algo fora de alcance do conhecimento e tomá-lo como refém de uma patologia, pois como escrito pelo próprio Freud, em seu artigo Luto e Melancolia (1917), ao discorrer acerca da natureza do luto, pontua: “Na verdade, essa conduta só não nos parece patológica porque sabemos explicá-la muito bem”. Assim, evidenciando a tendência que temos em patologizar o desconhecido.
Voltando à narrativa do livro, podemos entender que os cuidados tomados pela família para com Gregor Samsa, são similares ao fazer psiquiátrico atual, trancando o sujeito problemático em um pequeno quarto e provendo apenas comida — chamam isso, nos dias de hoje, em termos técnicos, de “cuidados paliativos”. Em sua Psicose, Gregor tem dificuldades em levantar-se da cama e enfrentar a realidade, ao mesmo tempo que se mostra indiferente diante dos problemas do corpo. Enquanto isso, a família o compreende como um peso e Samsa internaliza tal discurso. Em dado momento da história, a porta que trancava o inseto no quarto fica aberta por um acidente. A criatura — como se fosse a única a compreender a magia que era ouvir sua irmã tocar um violino — se aproxima de todos, enquanto o público que via tal cena se pôs a rir, demonstrando que não adianta abrir as portas do manicômio enquanto o ente social entender os libertos como simples vermes. Frente ao sujeito que necessita de ajuda, temos que ter a mesma visão do leitor de A Metamorfose, aquele que entende que por trás na couraça e dos estereótipos há um homem a ser compreendido por meio de uma escuta aberta e compreensiva, mesmo que ele próprio não se compreenda em um primeiro momento. Estaremos nós sempre seguindo uma lógica psiquiátrica e, tal como a família do Samsa, esperando que o problema (o louco) morra para que possamos continuar com nossas vidas? Se assim for, à exemplo da Psicanálise, a Psicologia terá que buscar sua própria metamorfose.