As respostas de Augusto dos Anjos e Alberto Caeiro

O Caminho De Guermantes
4 min readJul 16, 2020

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“Os poetas místicos são filósofos doentes
E os filósofos são homens doidos”

Assim, Fernando Pessoa inicia mais um dos poemas da coletânea “O Guardador de Rebanhos” de um de seus heterônimos: Alberto Caeiro. De primeira mão, a leitura dessa breve assertiva já nos desperta a atenção. Não é apenas um poema, não é uma ideia. Também não é um simples ad hominem contra os filósofos. É uma defesa da Realidade, constantemente ofendida pelas divagações e abstrações de poetas e filósofos, que acreditam chegar mais próximo da Natureza, ou da Divindade ao impor uma barreira que separa nossa realidade do suposto mundo das ideias.

Alberto Caeiro é um homem simples, do campo, ligado à terra e às percepções humanas. Ao contemplar uma noite de lua cheia, ele contempla uma noite de lua cheia. Ele não cria justificativas, histórias ou mitos onde a Lua é um símbolo para as fases da vida, ou como na mitologia grega, símbolo da fertilidade, personificada na deusa Artemis. Ele contempla única e exclusivamente a sensação do maravilhamento que é uma noite de lua cheia no campo. Qualquer pensamento que extrapola o plano do real, do material, é uma sandice filosófica, um erro. Pessoa perverte e rebate através de Alberto Caeiro a tradição simbolista da poesia que o precede.

No simbolismo, temos uma tentativa de tornar a arte um meio de desenvolvimento e expressão do lado espiritual do ser humano. Poetas como Cruz e Souza, Baudelaire ou o grande Augusto dos Anjos escreveram suas obras para dar voz à metafísica que se mistura com nossa percepção de mundo, dúvidas existenciais e religiosidade. É a busca pelo que transcende a nossa condição, exemplificada no último terceto do soneto “ Meu Nirvana”, de Augusto dos Anjos:

“Gozo o prazer, que os anos não carcomem,

De haver trocado a minha forma de homem

Pela imortalidade das Idéias!”

Para Alberto Caeiro, isso não é nada mais que um erro e uma perda de tempo. O mundo já é maravilhoso por si só, e precisamos contemplá-lo justamente em seu formato original. O homem não é capaz de dar justificativas à algo que é maior que ele, por mais que ele tente. Por isso, a realidade é não só a causa mas também deveria ser o próprio resultado das nossas aspirações. Como ele diz, já na coletânea “Poemas Inconjuntos”:

“A espantosa realidade das coisas

é a minha descoberta de todos os dias
Cada coisa é o que é
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra
E quanto isso me basta”

Fazendo a comparação entre os dois trechos: o primeiro, inspirado por algo maior que ele próprio, busca se aproximar do ideal em uma última fatal tentativa para se libertar das mazelas inerentes à nossa condição, como Sócrates ao defender em Fédon que a morte é a libertação do verdadeiro filósofo. O segundo nos mostra uma sensação de completude do eu lírico para com sua própria condição natural, a tal ponto que é difícil explicar o que se sente, já que a tendência natural do homem é dar justificativas metafísicas, apelar para o conceito de Destino ou de Divindade, etc. Não é que exista certo e errado entre uma ou outra. Mas podemos fazer algumas perguntas para conhecer um pouco mais da obra e qual delas faz mais sentido para o leitor. A abordagem simbolista de Augusto dos Anjos clama por uma dignidade moral do homem, uma espiritualidade que o fortalece frente aos dilemas existenciais, mas como o Ideal se aplica na prática? Isso é necessariamente algo que nos leva a algum propósito de vida? Ou é uma fuga do enfrentamento? Por outro lado, a abordagem “concreta” do modernismo de Pessoa não é, ao mesmo tempo que combate a filosofia, uma outra filosofia que critica e propõe outro sistema filosófico? A aceitação da condição é realmente alegre, como ele postula, ou isso nos leva a uma indiferença, uma subordinação a uma outra resposta metafísica, como o Destino? A essas provocações, algumas respostas dos autores podem ser vistas em outros textos. Em “Saudade”, Augusto dos Anjos escreve:

“Da saudade na campa enegrecida

Guardo a lembrança que me sangra o peito,

Mas que no entanto me alimenta a vida.”

A ambivalência das emoções evidenciam a complexidade das nossas percepções. Os sentimento são muito mais amplos do que breves categorizações. O simbolismo nos resgata essa condição e as possibilidades de encararmos a vida como uma experiência difusa, conturbada, de maneira mais espiritual e mais voltadas para as próprias aspirações e sentimentos.

Enquanto isso, Pessoa afirma:

“Sentir é estar distraído”.

Aqui, ele nos mostra a possibilidade de cada um de deixar-se levar pela percepção, aproveitar um momento, estar consciente, mas longe das elucubrações mentais e metafísicas. Não é preciso estar formulando conceitos ou buscando ideais e justificativas a todos os momentos. Se isso ocorre, provavelmente muitos aspectos da vida podem estar sendo mal aproveitados. Se você ouve uma música clássica apenas buscando uma “interpretação” do que ela “diz”, você está deixando de lado a experiência que a composição pode te proporcionar.

Resumindo, podemos trazer pontos de encontro entre obras, autores e escolas literárias completamente opostas. Cada uma delas podendo acrescentar algo na sua forma de enxergar a si e ao mundo. Aproveite essas perguntas para ler outros poemas de Fernando Pessoa, bem como outros Sonetos de Augusto dos Anjos e busque as próprias respostas, para além das “duas” trazidas nesse texto.

Dicas de leitura:

“Se eu morrer novo…” — Alberto Caeiro

“Quando vier a primavera” — Alberto Caeiro

“Versos a um coveiro” — Augusto dos Anjos

“Versos Íntimos” — Augusto dos Anjos

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