Bukowski e a imaturidade literária

O Caminho De Guermantes
3 min readFeb 4, 2021

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Controverso e obsceno como é, Bukowski se tornou famoso não só por sua escrita excêntrica e despojada, sem compromisso com estruturas formais de escrita e de expressão artística, mas principalmente pela sua singularidade em expressar cruamente a realidade da solidão humana, da falta de esperança, do despropósito e da força paralisante dos sentimentos humanos, em sua maioria, afogados em álcool, tabaco e prazeres carnais.

Um dos poemas que se destacam em sua obra, ao meu ver, com certeza é o poema “alone with everybody” ou “sozinho com todo mundo”.

Esse poema, não tão conhecido quanto o famoso “Pássaro azul”, revela uma sensibilidade humana no autor, que se expressa em uma visão pessimista e amargurada com a condição humana.

“a carne cobre os ossos

e colocam uma mente

ali dentro e

algumas vezes uma alma,

e as mulheres quebram

vasos contra as paredes

e os homem bebem

demais

e ninguém encontra o

par ideal

mas seguem na

procura

rastejando para dentro e para fora

dos leitos.

a carne cobre

os ossos e a

carne busca

muito mais do que mera

carne.

de fato, não há qualquer

chance:

estamos todos presos

a um destino

singular.

ninguém nunca encontra

o par ideal.

as lixeiras da cidade se completam

os ferros-velhos se completam

os hospícios se completam

as sepulturas se completam

nada mais

se completa.”

(Tradução: Pedro Gonzaga)

Existem duas frentes possíveis de se interpretar essa obra que, ao meu ver, se complementam. Por um lado, existe uma espécie de filosofia pessimista, onde o autor tenta descreditar a busca da humanidade por uma comunhão, através do mais sublime sentimento de amor. Por outro, o autor revela uma amargura de não conseguir alcançar essa comunhão, enxergando na fúria feminina e no alcoolismo masculino, ao mesmo tempo uma justificativa e uma alternativa para sua desistência na busca de algo maior.

Para a primeira frente interpretativa, é nítido por todo o conjunto da obra de Bukowski o movimento do retorno ao banal, na busca por algo concreto e material para se aguentar o tormento da vida solitária e descrente. A prostituição, o alcoolismo e o tabagismo são elementos que, dentro desse imaginário, inserem na boemia a sensação de aproveitamento da vida e fuga dos pesares da condição humana. Tal é a associação entre boêmia e poetas que uma geração inteira de ultra românticos surge para estabelecer e fortalecer esse vínculo.

Para a segunda frente interpretativa, é preciso questionar o texto com uma severidade maior. Ora, é extremamente improvável que apenas “lixeiras, ferros-velhos, hospícios e sepulturas” possam ser envoltos por um sentimento de completude. De onde sairiam todos os mártires, figuras históricas e descobertas científicas, se assim fosse? É sensato concluir que, em certo nível, a primeira frente interpretativa, ilustra uma mentalidade de coitadismo. É, nesse sentido, uma desculpa do indivíduo fraco de virtude, frente aos problemas e dificuldades da vida. Essa fraqueza, expressa na arte de Bukowski, também é facilmente replicada para leitores que não se agarram a valores e princípios universais. É uma visão contagiosa, a da queda da virtude para os prazeres. Não é difícil encontrar um jovem leitor que vangloria a boemia citando Bukowski e Nietzsche, “construindo seu próprio código moral.”

Bukowski é frequentemente taxado como um velho rabugento e imoral, que causa aversão. E de fato, é. Mas talvez esse seja apenas um lado da literatura que não estamos acostumados a lidar na nossa imaturidade literária.

Enfim. Eis aqui apenas algumas reflexões sobre um estilo diferente de obra que não vinha sendo comentado até então pelo Caminho de Guermantes, mas que também pode ser um disparador para novos textos.

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