Educação e Humildade

Por que a virtude da humildade é a base da vida intelectual

O Caminho De Guermantes
5 min readAug 27, 2020

Certa vez, disse um sábio que a humildade precede a honra, e o temor é o princípio da sabedoria. Esmiuçando essa frase milenar, a ideia é simples: não importa que valor possui a honra, quanto tempo ela carrega em si ou por quantas guerras ela foi forjada — a humildade a precede. Não importa quão grande é tal sabedoria, quanto tempo ela carrega em si ou por quantos livros ela foi forjada — sem o temor como princípio, de nada vale; não há sabedoria que se sustente em si mesma. E não é papo de moralista, nem ensinamento ultrapassado. A verdade é que todos os dias a vida real nos põe diante de pessoas que precisam ser ouvidas, contextos que precisam ser absorvidos e — eis o nosso tema principal — assuntos que precisam ser compreendidos. E todas essas situações se tornam inviáveis se não há uma abertura e um reconhecimento sincero de nossa própria ignorância. Por isso, não sou eu, mas é o sábio quem te garante: sem sujeição, não há conhecimento.

Já que a ideia é curvar-se, vamos usar como base os conselhos de Hugo de São Vitor sobre a humildade como princípio do aprendizado. Dizia ele que, de modo principal, ela se traduzia em 3 advertências básicas: A primeira é que não tenha como vil nenhuma ciência e nenhuma escritura. A segunda é que não se envergonhe de aprender com ninguém. A terceira é que, quando tiver alcançado a ciência, não despreze aos demais. Vamos analisá-los e desenvolvê-los:

1. Não tenha como vil nenhuma ciência e nenhuma escritura

Ter a “mente aberta” tornou-se uma qualidade louvável e bastante pregada. Geralmente, a proposta é automaticamente traduzida para: “não se prenda a uma ideia, mas confie em todas, porque todas estão certas”. A verdade é que essa é uma falsa premissa. Em uma batalha, estar no meio do front significa morte na certa: uma hora você vai precisar escolher o seu lado, sustentar suas ideias e aprender a dialogar com as outras, sem trair você mesmo. Não ter como vil nenhuma ciência ou escritura é não desprezar diferentes sistemas de pensamento, não fechar os olhos imediatamente e menospreza-los, como se os fizesse indignos de sua atenção. Não se contente com a contenda, mas veja a discórdia como uma oportunidade para fortalecer seus conceitos. Muitas vezes, a pessoa do lado oposto sabe de algo que pode mudar a sua vida. E é disso que trata o segundo ponto tratado por Hugo de S. Vitor.

2. Não se envergonhe de aprender com ninguém

A história do mundo não começou no dia do seu nascimento. Séculos de observação, centenas de biografias notáveis e toneladas de páginas escritas formaram o caminho pelo qual você anda hoje. Aceitar aprender alguma coisa significa aceitar que tudo isso que o precede é muito mais importante que sua vontade de inovar. Aprender alguma coisa também significa admitir que você não sabe nada (ou quase nada) sobre essa coisa. Para entender, é preciso abrir mão de si mesmo e dedicar seu tempo e esforço ao assunto escolhido. Diante disso, é de natural conclusão a certeza de que alguém no mundo sempre vai saber muito mais que você, e esse alguém pode ser quem você menos espera. Ter uma mente aberta, aqui neste caso, é curvar-se em reverência não somente ao que o passado nos legou, mas também ao que o presente nos oferece. Um professor de Oxford pode ter um currículo brilhante, mas a filosofia de vida do seu vizinho idoso pode ser transformadora. Não se envergonhe de aprender com ele.

3. Quando tiver alcançado a ciência, não despreze os demais

A frase já começa com um adendo: “quando tiver alcançado a ciência”. Ou seja, não é algo que se consegue da noite para o dia. O estudante, acredito eu, começa a estudar com altas pretensões. Quer o conhecimento verdadeiro, a sabedoria altíssima, a riqueza de compreensão e a clareza de expressão. São metas justas, afinal não se trata de uma instrução acessória, mas de um estudo sério e comprometido com uma vida inteira. A “ciência” aqui mencionada está longe de ser imediata ou suficientemente abrangida por um diploma. É, na verdade, uma sabedoria singela — nem um pouco misteriosa — que ajuda a ver e julgar melhor os fatos que nos circundam (muito dela é resultado da leitura dos grandes clássicos, leia mais sobre isso aqui). Essa tal ciência tem origem no Bem, e deve portanto visar ao Bem: qualquer soberba por ela motivada é, por si só, algo contradizente, desarmônico. E mesmo que a “ciência” aqui referida fosse um mero expertise em alguma área profissional, a questão é a mesma: uma boa árvore gera bons frutos. Se os estudos forem bem conduzidos, seu resultado será frutífero não apenas para seu próprio bem, mas para servir aos outros. Daí a importância de não tratar o saber como uma propriedade restrita, mas uma construção sólida e fortificada durante séculos, da qual você (e quaisquer outras pessoas) é apenas um pequeno aprendiz, e, quiçá, um dia, participante. Das próprias palavras de Hugo de S. Vitor: “Alguns sofrem desse ego inflado porque contemplam demasiadamente seu próprio conhecimento e, quando lhes parece que são algo, julgam que outros, aos quais não conhecem, nem são nem poderiam ser como eles (…) Não aconselho que se siga tal proceder.”

O fato é que, em suma, nós palmilhamos uma estrada construída por incontáveis gerações. Insistir em curvar o mundo para que ele se ajuste às nossas próprias concepções não é a melhor decisão a ser tomada. O movimento é contrário: seja por gratidão, bom-senso ou humildade, nosso dever é nos curvarmos em reverência ao que nos foi legado pelos séculos que nos antecedem, sem perder de vista as circunstâncias que nos são propostas hoje e as pessoas — todas elas — que nos cercam hoje. “Busca em todos, indiferentemente, o que vê faltar a si mesmo, e não pensa no que já sabe, mas em tudo o que desconhece”, diria Hugo de S. Vitor — “esta é a humildade conveniente à educação dos estudantes.”

--

--

O Caminho De Guermantes
O Caminho De Guermantes

Written by O Caminho De Guermantes

Literatura | Filosofia | Psicologia | Cultura

No responses yet