Northanger Abbey
Fantasia e Realidade no romance de Jane Austen
“Seu temperamento era tão polido quanto sua inteligência”. Assim escreveu Henry Austen sobre sua irmã Jane, na nota biográfica em Northanger Abbey. Romancista britânica nascida em Steventon, Hampshire, Inglaterra, Jane Austen ofereceu ao romance inglês o primeiro impulso para a modernidade, ao tratar do cotidiano de pessoas comuns com aguda percepção psicológica e um estilo de uma ironia sutil, dissimulada pela leveza da narrativa. Na época, sua obra foi muito mal vista pela crítica, e sofreu grandes impedimentos no meio editorial. Mas seu sucesso foi inquestionável: hoje, a crítica a considera a primeira romancista moderna da literatura inglesa, e uma das maiores escritoras da literatura mundial.
Os romances de Austen se concentram principalmente em temas de juventude e casamento, no entanto, seu trabalho se destaca por sua representação nítida e satírica da sociedade inglesa do final do século XVIII. Otto Maria Carpeaux afirmou que “personagens como Elizabeth Bennett e Fitzwilliam Darcy, em ‘Pride and Prejudice’, estão entre as criaturas mais completas da literatura universal”. Ela ainda é uma das romancistas mais estudadas e influentes de seu tempo, em grande parte porque estava criando personagens femininas fortes e incomuns durante esse período (conhecido como período da Regência), e também por seu domínio da forma, sátira e ironia. Tal domínio é, sem dúvidas, o ponto forte do seu romance Northanger Abbey.
Jane Austen escreveu Northanger Abbey enquanto residia em sua casa de infância em Steventon, Inglaterra, mas o romance se passa em grande parte na cidade turística de Bath, onde Austen visitou suas férias de um mês em 1797. A heroína, Catherine Morland, é uma garota ingênua e bondosa, leitora assídua de romances góticos, que passa uma temporada na cidade de Bath, onde faz amizades e desenvolve seu caráter, seu julgamento e personalidade. Na segunda parte do livro, Catherine conhece a Abadia de Northanger, a residência da amigável família Tilney, e é nela que reside o objeto principal da análise deste ensaio. Na abadia, Catherine percebe que a realidade da vida é muito diferente do que ela imagina, e esse despertamento é muitas vezes abrupto e severo — assim como a ironia de Austen. Entretanto, ao mesmo tempo, a autora mostra, por meios indiretos, que o mundo real não é cru, nem vazio, nem insignificante. A novela, mesmo em um compromisso sério com o ordinário e comum, é realista o suficiente para abarcar todos os aspectos do ser humano, inclusive o extraordinário. E até mesmo uma crítica ríspida ao gótico, fantasioso e ilusório, pode se tornar um belo testemunho da beleza e do deslumbramento da vida.
As diferenças entre o romance e o romanesco são estudadas pela crítica desde o início do século XX. Consensualmente, enquanto o romanesco é caracterizado pelo assombro, misticismo, idealismo e é geralmente fechado em um universo simbólico, o romance é focado em acontecimentos mundanos e seculares, baseados no mundo empírico e sempre mutável. Na prática, a principal diferença entre o romance e o novelesco está na maneira como eles encaram a realidade. O romance observa a realidade de perto e com detalhes. Chegamos a ver as pessoas em sua real complexidade de temperamento e motivação. Elas estão em uma relação explicável com a natureza, entre si, com sua classe social, com seu próprio passado. O caráter é mais importante que a ação e o enredo, e provavelmente as ações trágicas ou cômicas da narrativa terão o objetivo principal de aprimorar nosso conhecimento e sentimento por um personagem importante, um grupo de personagens ou um modo de vida.
Entretanto, as características “mundanas” dos romances são diversas vezes confundidas com a trivialidade. É importante salientar que a necessidade da verossimilhança e a prevalência de temas cotidianos e concretos não implicam na ausência total de imprevisibilidade e maravilhamento. O realismo sobre o qual se baseiam as histórias é suficiente para abarcar a vida humana e todas as suas experiências, que incluem o cotidiano e os problemas comuns, mas também incluem os momentos de esplendor, as coincidências inimagináveis e, muitas vezes, as experiências místicas que marcam o início de uma conversão religiosa, por exemplo. As histórias de escritores como Tolstói e Dostoiévski, referências mundiais na escrita de romances, amparam-se em uma Rússia comum, com pessoas comuns e eventos comuns como o trabalho, a família e as relações sociais, mas suas narrativas são ricas em referência simbólicas e reflexões riquíssimas sobre a vida humana, o sofrimento psicológico e as inquietações ontológicas do homem. O romance, de acordo com Antonio Candido, é:
“(…) a realidade elaborada por um processo mental que guarda intacta a sua verossimilhança externa, fecundando-a interiormente por um fermento de fantasia, que a situa além do quotidiano — em concorrência com a vida.”
Essa é uma característica perceptível do romance em questão. Em Northanger Abbey, Jane Austen critica o retrato fantasioso da narrativa gótica, e sua tendência ao irreal e ilusório. O livro é frequentemente considerado como uma “divertida e afiada paródia satírica dos romances góticos populares na sua época”. Catherine é muito influenciada por sua leitura de romances góticos e enxerga tudo como parte de uma história, tem ideias fantasiosas e chega a emitir julgamentos graves por causa dessas elucubrações. Na segunda parte do livro, quando da sua visita à Northanger, Henry Tilney sabe de seu gosto pela leitura — e seu fascínio por Udolpho, de Mrs. Radcliff — e a induz a imaginar a abadia como um lugar assombrado. É cômica a construção que a autora faz nesse sentido: ela consegue representar muito bem as ideias mirabolantes da srta. Morland na abadia, suas conjecturas misteriosas sobre o baú, as janelas, os quartos e até mesmo o assassinato da sra. Tilney. Jane parece brincar com sua personagem. Em uma determinada passagem, Catherine percebe uma velha escrivaninha no quarto, com muitas fechaduras, em uma busca caracteristicamente gótica, ela encontra um manuscrito, mas acaba vencida pelo sono.
“Murmúrios vazios pareciam rastejar ao longo da galeria, e mais de uma vez seu sangue gelou com o som de gemidos distantes. Horas e horas se passaram, e a cansada Catherine ouviu três batidas proclamadas por todos os relógios da casa antes que a tempestade diminuísse e ela, sem saber, adormeceu profundamente.”
Acontecia uma tempestade, e a única vela de que ela dispunha de repente se apagou. Era impossível dormir até que os primeiros raios de sol lhe permitissem ler a mensagem que ali se escondia. Certamente, a curiosidade lhe tiraria o sono. Ironicamente, em alguns minutos ela dormiu. A ironia foi ainda mais longe: no outro dia, às oito da manhã, ela retomou a busca. Envolta em mistério e esperando um longo pergaminho daqueles que fazem estremecer só em pensar, ela encontra simplesmente uma lista de lavanderia.
“Camisas, meias, gravatas e coletes. Tal foi a coleção de papéis (deixados talvez, como ela poderia então supor, pela negligência de um criado no lugar de onde os havia levado). (…) Ela se sentiu humilhada até o pó. A aventura do baú não teria sido suficiente para torná-la mais sábia? “(P. 2374)
Nessa passagem, a surpresa da heroína ao ser confrontada com a realidade é também experienciada pelo leitor, que agora vê um mundo fantasioso sendo desconstruído e é deixado com as coisas reais, os fatos, a lógica, a probabilidade. Não há melhor antídoto para o exagero que a simplicidade, e o mundo fantástico de Catherine foi reduzido a uma simples lista de lavanderia — a crítica estava feita. Porém, Jane Austen não se contenta com um mundo insípido, frio, feito de pura crítica ou ironia. Suas histórias são ricas e sempre escondem belos pensamentos, mesmo nas entrelinhas. Os papéis no fundo daquela gaveta eram simples listas de lavanderia, e não um manuscrito misterioso ou um pergaminho encantado. Mas o final do livro nos mostra, em menos de uma linha, que aquela lista era parte de um romance ao qual não temos acesso, mas que aconteceu.
“Quanto ao rapaz em questão, portanto, devo apenas acrescentar (…) que se tratava do próprio cavalheiro cujo servo negligente deixou atrás de si aquela lista de lavanderia, quando de uma longa visita a Northanger.”
A escrivaninha de Eleonor guardava a sete chaves um dos únicos registros da longa estadia de um amante, que no futuro seria seu esposo. Era uma peça simples, desprovida de significado aparente, prova concreta da realidade dura que destruiu a fantasia gótica de Catherine, mas ainda assim era parte de uma história inédita, que poderia ser facilmente tema de um outro livro da Jane. Além disso, a própria estadia de Cathy na abadia foi fruto direto de uma irrealidade, uma mentira. O general convidou-a porque ouvira falar em seus dotes e na importância de sua família, e, movido de interesse, planejou sua união com seu filho Henry. Todas os dias lá passados estavam inseridos em uma ilusão, e seu fim foi tão abrupto quanto o apagar da vela e a decepção ao ler a lista, tão abrupto como é a chegada e o encontro com a realidade. Foi expulsa, sem nenhuma despedida, em uma velha carroça: a heroína fracassada. Mas o final nos mostra o mesmo que a lista de lavanderia. Aquilo que era uma ilusão, uma fantasia, a fez encontrar-se com a realidade dura, mas não deixou de ser especial, carregada de significado. A sua estadia na abadia concedeu-a a amizade fiel de Eleonor e o amor declarado de Henry Tilney. No fim, a leitura de romances, a imaginação e a fantasia tiveram uma profunda importância na formação de Catherine, e a realidade, mesmo que crua e muitas vezes brutal, mostrou estar também delineada por coincidências nem sempre explicáveis, e um mundo nem sempre previsível.
Northanger Abbey foi uma paródia muito bem feita do mundo irreal e com uma ideia explícita de que a realidade factível é muito diferente daquela retratada nas histórias góticas. Catherine teve a oportunidade de acordar a tempo, e pela ironia o leitor é convidado a fazer o mesmo. Mas as ilusões vividas pela heroína, além de terem contribuído para seu desenvolvimento, acabaram se revelando como parte fundamental da realidade do romance moderna: ele não necessariamente implica na anulação total da fantasia. A lista de lavanderia foi, ao mesmo tempo, uma decepção e um milagre. Nas entrelinhas de um objeto banal, escondia-se uma bela história, que só se tornou conhecida no fim do livro, em uma passagem rápida, fria, superficial. A estadia de Catherine na abadia foi, por completo, uma ilusão, pois fora motivada por uma mentira. Mas todo seu futuro foi possível por causa do tempo que ela lá viveu — seu amadurecimento, sua amizade com Eleonor, seu casamento com Henry. Ao fim, em uma narrativa simples e acertada, mesmo crítica e impassível, Jane Austen não traiu seu estilo: não omitiu a beleza da vida e nem anulou a imprevisibilidade da História.