Notas sobre Werther

As coisas são reais e independem de nossas sensações.

O Caminho De Guermantes
5 min readSep 24, 2020

A vida humana não passa de um sonho. Nosso espírito só pode encontrar tranquilidade por meio de uma resignação povoada de sonhos, como um presidiário que adorna de figuras multicoloridas e luminosas perspectivas as paredes de sua cela. […] Concentro-me e encontro um mundo em mim mesmo, um mundo de pressentimentos e desejos obscuros, e não de imagens nítidas e forças vivas. Tudo flutua vagamente nos meus sentidos, e assim, sorrindo e sonhando, prossigo na minha viagem através do mundo. (Goethe, Os Sofrimentos do Jovem Werther: L&PM, 2010, p. 12)

The Monk by the Sea by Caspar David Friedrich, 1810

A leitura da semana é “Os Sofrimentos do Jovem Werther”. Se é possível fazê-lo, aqui vai uma tentativa de compreender quem era o garoto por trás do famoso nome.

Há algumas páginas, Werther reconheceu sua vontade e seu limite: ele era um insensato em busca daquilo que não se encontra neste mundo. Algo faltava, vivia pulsando dentro de si, e era eterno. A natureza era a principal expressão dessa (i)matéria, mas insuficiente, porque demasiadamente passiva. Nela havia algum consolo, e era seu lugar seguro, mas não demandava nada dele além da contemplação. Diante dela, ele era impotente. Por isso, no íntimo do seu ser estava aquele “mundo de aspirações, adormecidas e entorpecidas pela inação”.

Essa é, acredito, uma “situação ontológica” comum. Reconhecer a sede, padecer por ela e buscar pela solução, às vezes, é um processo que dura alguns anos, às vezes, toda a vida. Werther buscou, por um tempo que não parece muito, e a encontrou: era uma pessoa. Não exatamente uma pessoa — e aí se inicia o problema — mas algo capaz de satisfazê-lo. Uma consciência párea para as conversações, uma beleza suficiente para seu senso estético. À amiga da juventude, anônima, Werther condicionou não apenas seu futuro (ele queria superar-se), mas toda a potência do seu Ser. Junto e por meio dela, ele se tornaria “tudo aquilo que seria capaz de ser”. Percebam: não por ela, nem mesmo por algum ideal, mas por si. Suas intenções de progredir, elevar-se espiritual e intelectualmente, não eram direcionadas à moça objeto de seus afetos, mas a si mesmo, somente. Com Carlota (ou Charlotte) a história se repete, mas agora com um fator adicional — ela é prometida a outro. A desaprovação e a proibição que existe em torno de sua paixão por Carlota é, sem dúvidas, o motor que impulsiona tanta obstinação, mas não somente isso. No fundo, insistir por Lote é insistir por si mesmo, pois dela depende toda sua existência.

J. W. Goethe by GM Kraus, 1775

Se dela depende toda a sua existência, sem ela, ele não é. Não existe nele um centro capaz de sustentar-se, ou uma narrativa consistente em guisa de construção. Disso sabemos desde as primeiras cartas enviadas a Wilhelm. Diante das limitações da natureza e da razão — que é o mesmo “muro” reconhecido também pelo Homem do Subsolo, de Dostoiévski — Werther assume que nosso espírito só pode encontrar tranquilidade em uma “resignação povoada de sonhos”, como um presidiário que, desenhando as paredes de sua cela, encontra uma maneira de tornar sua prisão menos insuportável.

Acontece que as coisas são reais, e isso independe de nossas sensações. Com uma realidade adornada de fantasias, seu mundo interior é único, e grandioso, mas feito de pressentimentos e desejos obscuros, flutuando vagamente em seus sentidos. Não há, em si, clareza, nitidez, rendição, esforço servil ou vida real. Há apenas uma ideia, um castelo de cristal, um monumento erguido à própria imagem, cujas bases, se existem, estão muito longe da realidade. Werther vive uma história de cavalaria testemunhada apenas por ele e por nós, leitores. É uma alma sensível, deveras, e uma inteligência singular, mas somente isso. Sua natureza transbordante, da qual ele se queixa constantemente, de fato existe, a ponto de não caber em si: não porque sua grandeza é imensurável, mas porque não há lugar para ela, dentro dele. Não existe fundamento sólido, e por isso, tragicamente, seu único destino é dissolver-se, perder-se e sucumbir — primeiro, à realidade, depois, à morte.

O fato é que nossa leitura impetuosa muda de direção quando percebemos que é necessário sair da ilha para ver a ilha. É necessário deixar de olhar para si mesmo para ver o outro por completo, fincar os pés na realidade e agir naquilo que ela oferece. Ser inteiro, conter-se, centrar-se, até que seja possível oferecer algo de valor a alguém, e então amá-lo. E sonhar, mas não render-se ao sonho. Pensar, mas não perder-se em conjecturas. No fim, o sofrimento do jovem Werther é belíssimo, mas só de longe. Suas razões são tão “justas” quanto as batalhas de Dom Quixote, e seu fim, tão “honrado” quanto o crime de Rhaskolnikov. O castelo de cristal não suportou os abalos do mundo, e terminou em estilhaços. Goethe juntou todos eles, e os legou a nós como um retrato seu, em uma centena de páginas. Não como um quadro, mas — como boa Literatura — como um espelho daquilo que se pode ser… ou não ser.

If you can dream — and not make dreams your master;

If you can think — and not make thoughts your aim;

If you can meet with Triumph and Disaster

And treat those two impostors just the same;

If you can bear to hear the truth you’ve spoken

Twisted by knaves to make a trap for fools,

Or watch the things you gave your life to, broken,

And stoop and build ’em up with worn-out tools

[…]

You’ll be a Man, my son.

Se és capaz de pensar — sem que a isso só te atires;

De sonhar — sem fazer dos sonhos teus senhores;

Se, encontrando a desgraça e o triunfo, conseguires

Tratar da mesma forma a esses dois impostores;

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas

Em armadilhas as verdades que disseste,

E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,

E refazê-las com o bem pouco que te reste;

[…]

Tu serás um homem, meu filho.

(“Se”, Rudyard Kipling, trad. Guilherme de Almeida)

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