O Caminho de Guermantes
O primeiro volume da obra “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, acontece no vilarejo de Combray. O narrador-personagem, o homônimo Marcel, registra em passagens detalhadas o passado vivido na velha França.
A Combray de Proust é uma pequenina cidade de passado medieval, cercada de belos campos, ruínas de castelos e igrejas, além de antigas propriedades ocupadas por famílias abastadas. Para chegar a essas propriedades, há dois caminhos possíveis: um deles é mais curto, passando pela vila de Méséglise, com seus lilases, seus espinheiros, suas centáureas, suas papoulas e suas macieiras. O outro é uma longa estrada acompanhada pelo curso do rio Vivonne, de um azul-celeste, claro e cru, quase violeta, com girinos, belas ninfeias e botões-de-ouro.
“Mais adiante, porém, a corrente amortece, e atravessa uma propriedade de acesso livre ao público, graças a seu dono, que ali se divertira em trabalhos de horticultura aquática, fazendo florir, nos pequenos banhados que forma o Vivonne, verdadeiros jardins de ninfeias. Como as margens tinham muito arvoredo naquele ponto, as sombras das árvores davam à água um fundo habitualmente de um verde sombrio, mas que às vezes, ao voltarmos por certas tardes resserenadas depois da tempestade, eu vi de um azul claro e cru, tirante para violeta, de uma aparência de interior e gosto nipônico. Aqui e ali, à superfície, enrubescia como um morango uma flor de ninfeia de coração escarlate, branco nas bordas.”
O passeio pelos lados de Guermantes era uma atividade comum da família de Marcel. Do fim do caminho, não muito se fala. O grandioso castelo da família Guermantes era, na percepção do menino, rodeado por um aspecto onírico, platônico, abstrato. Mesmo nunca tendo os conhecido pessoalmente, ele sabia que o duque e a duquesa eram seres reais, existentes e residiam, de fato, naquele lugar inalcançável. Mas suas imagens eram sempre elegantes, majestosas, imponentes, como se tecidas em relíquias de tapeçaria. O fato é que era o caminho o mais importante. A estrada simples, as lilases, as nenúfares e os belos botões-de-ouro eram parte essencial de sua própria biografia. Sua história relata diversos momentos da infância, juventude e maturidade acompanhados pelas longas caminhadas e pelo movimento cintilante das águas do rio Vivonne, que, paciente, foi muitas vezes um ouvinte fiel das angústias, anseios e saudades do jovem narrador. O futuro o preocupava sobremaneira; seu profundo apreço pela Literatura era incontestável, mas seu desejo de tornar-se um escritor talentoso e renomado vivia cambaleando em dúvida. Algo naquele caminho, porém, transformava por completo o cenário e o protagonista daquelas reflexões.
“Quantas vezes, em meus passeios para os lados de Guermantes, não me pareceu muito aflitivo não ter nenhum pendor para as letras e ver-me obrigado a renunciar de uma vez por todas a tornar-me um escritor famoso? Tanto me fazia sofrer esse pesar, enquanto me punha a cismar sozinho, um pouco afastado dos outros, que meu espírito, espontaneamente, em uma espécie de inibição ante a dor, deixava por completo de pensar em versos, em romances, em um futuro poético que minha falta de talento me vedava esperar. E então, muito fora de todas essas preocupações literárias e em nada ligados a ela, eis que de súbito um telhado, um reflexo de sol em uma pedra, o cheiro de um caminho, faziam-me parar pelo prazer único que me davam, e também porque pareciam ocultar, além do que eu via, alguma coisa que eles convidavam a colher e que me era impossível descobrir, apesar dos esforços que fazia. Como sentia que aquilo se achava neles, eu ali ficava imóvel, a olhar, a respirar, procurando ir com o pensamento além da imagem ou do odor. E se tinha de correr atrás de meu avô para continuar o passeio, fazia-o de olhos fechados, atento em relembrar exatamente o perfil do telhado ou o matiz da pedra, que, sem que eu soubesse o motivo, me haviam parecido replenos, prestes a entreabrir-se, a revelar-me aquilo de que não eram mais que a cobertura (…)”
Como em um átimo de milagre, a atenção do garoto afastava-se das perguntas sem resposta que tanto o afligiam e voltava-se a algum elemento ao seu redor, como a posição das telhas no teto de uma casa, a cor que refletia uma pedra atingida por um raio de sol, ou até mesmo o cheiro que o caminho parecia roubar para si. O olhar preocupado, de repente, deixava o domínio irreal da vida que foi ou que será e repousava, satisfeito, no lugar em que a vida acontecia. O telhado, a pedra, o odor e a cor carregavam em si uma realidade oculta que convidava o contemplante a colhê-la e conhecê-la, realidade essa da qual os simples objetos eram apenas uma cobertura. Entreabrindo-se, majestosa e circunspecta, a misteriosa e inominada natureza mítica das coisas capturava num instante a intuição do humilde menino, que agora se esforçava para guardar consigo na alma tamanha beleza e sublimidade.
A Literatura tem um quê de mistério, de escuridão, de transcendente. Muito mais que reunir técnicas requintadas e fins grandiosos e inalcançáveis, suas páginas abrigam um modesto fragmento da tal realidade. Ela desperta os sentidos, faz-nos humanos, contém o tempo e transforma o ser, abrindo nossos olhos e forjando nossa capacidade de viver. Mesmo que sua matéria seja introspectiva, seu convite é para o exterior: um livro molda o olhar que vê a si e ao mundo. O caminho de Guermantes, então, testemunhava toda a história do jovem passante, mesmo quando o objetivo primevo ou o destino da tão longa estrada não apareciam no horizonte, nem se mostravam de forma tão clara e límpida como as águas do Vivonne. Ao mesmo tempo, o trajeto continha em si ferramentas preciosíssimas que traziam sentido, verdade e, principalmente, beleza à jornada que apenas começava.