O processo de Individuação de Raskólnikov
Sempre nos referimos à literatura como expressão artística, política ou social de um aspecto da realidade, em um determinado contexto histórico. Enquanto isso, também temos uma propriedade inerente aos textos clássicos por conseguirem, nesse formato de expressão, abordar e pontuar elementos da realidade que não só dizem respeito àquele contexto, mas que podem ser, de certa forma, universalizados, como elementos imanentes na condição humana. Os grandes textos da literatura clássica, de Homero à Proust, evocam temáticas não necessariamente grandiosas em seu conteúdo, mas sim, grandiosas em sua própria expressão. Dostoiévski escreveu amplamente sobre o lado obscuro do homem. A culpa, o remorso, a violência e a humilhação são temas recorrentes em suas obras, assim como em diversas outras que nem se caracterizam como clássicas, mas o que torna seus textos lidos até o presente momento é sua forma, para além do seu conteúdo.
Um dos principais eixos narrativos que se observa em grandes clássicos é, naturalmente, o desenvolvimento de um personagem ao longo do enredo. Suas percepções, visão de mundo e comportamento no mundo real, muitas vezes delineando como esses elementos vão sendo transformados numa trajetória de desenvolvimento moral ou espiritual, culminando em alguns momentos, mas não necessariamente, ou em uma compreensão da realidade ou em um autoconhecimento sólido, na qual o personagem pode sustentar sua existência.
Esse processo, na psicanálise jungiana é referenciado como Individuação. Em termos conceituais, Individuação, processo amplamente debatido e explicado por Marie-Louise von Franz no capítulo III do livro “O Homem e seus Símbolos”, é o caminho do crescimento psíquico, onde o nosso consciente consegue harmonizar com o nosso inconsciente, construindo e moldando o nosso self, que representa a unidade da nossa psique. Ao longo do processo de individuação, o ser humano se depara com diversos conflitos internos que, em um processo de individuação bem sucedido, resulta na integração da personalidade do indivíduo desde a compreensão e assimilação da própria sombra, reconhecendo as vontades e repressões do próprio inconsciente ao mesmo tempo em que se mantém uma postura de receptividade às mensagens que os elementos oníricos e simbólicos dos sonhos querem transmitir, até a mesma postura de abertura e receptividade para com a Anima e o Animus, as estruturas arquetípicas que representam o lado do sexo oposto presente no inconsciente coletivo.
Na literatura clássica temos a chance de enxergar com nitidez como esse processo funciona na construção do ser humano.
Poucos exemplos seriam tão bons quanto o caso de Raskólnikov, em Crime e Castigo. Em primeiro plano, vemos o personagem expressando um raciocínio idealista de maneira consciente. O personagem discursa e argumenta acerca da diferenciação entre homens extraordinários e ordinários, onde os primeiros possuem o direito natural de subjugar os segundos, sob a justificativa de ser protagonista de um movimento que vai levar a um bem maior, uma ascendência nos patamares morais da sociedade. Apenas no momento da confrontação com a concretude desse pensamento, que o ego de Raskólnikov sofre o choque inicial. O personagem projeta esse ideal personificando-o na figura de Napoleão, ainda de maneira deturpada, uma vez que seu inconsciente rejeita a possibilidade dele próprio ser um homem extraordinário. Confrontado de maneira direta com as consequências de seu pensamento e principalmente de seus atos, no caso do assassinato de duas irmãs, Raskólnikov sofre primeira grande a ameaça ao próprio ego, e entra em um processo de individuação, ao mesmo tempo em que somatiza todas as reações inconscientes, em acessos de febre e delírios. Como diz Marie-Louise von Franz:
“Temos então que dar início a esse processo engolindo todo tipo de verdades amargas”.
Durante seu estado febril, suas alucinações, sonhos e reflexões, nos permitem o acesso ao conteúdo onírico que é emitido pelo inconsciente, carregando simbolicamente diversos traumas passados e sentimentos reprimidos que não eram evidenciados em um estado consciente. Passamos pelo processo de individuação junto de Raskólnikov, desencadeado por um intenso sentimento de culpa. A culpa, nesse caso, não se refere meramente ao sentimento de responsabilidade por um ato imoral. A culpa de Raskólnikov também envolve sua humilhação frente ao ideal que era tomado como referência. Uma vez que o personagem não se aproxima de seu ideal, ou do Super-eu criado e personificado em Napoleão, automaticamente temos que ele próprio se encontra subjugado por esse ideal. A saída para esse dilema psicológico é tomar outro referencial moral, na qual ele possa emergir como um ser compatível com esse referencial, desviando o sentimento de culpa para outras formas de expressão. Nesse caso, a alternativa é ao próprio atoo Super-eu coletivo da cultura ortodoxa russa. Sônia, personagem essencial para o processo de individuação de Raskólnikov, muitas vezes o reconhece como um ser carregado do fardo da culpa, do sofrimento. É necessário o caminho da redenção, mas Raskólnikov ainda não o encontrou, e precisa de sua ajuda para isso.
Ao se pôr nessa nova perspectiva, Ródion tem agora a perfeita justificativa para integrar seu sentimento de agressividade, sublimando-o em uma nova forma de expressão consciente: o amor de Cristo. Com esse novo referencial, o personagem pode seguir uma linha de raciocínio que efetivamente desvia sua energia psíquica mais instintiva para uma rigorosidade moral. O Super-eu napoleônico, que antes o causava medo, por sua autoridade como ideal de homem extraordinário, foi substituído por um Super-eu que pode redimir sua culpa, através do reconhecimento do pecado e da penitência. Que fique claro que ao comentar que: “Ródion tem agora a perfeita justificativa para reprimir seu sentimento de agressividade”, não me refiro a um plano consciente de fuga das consequências, mas sim, do resultado do processo de auto conhecimento e de harmonização entre elementos inconscientes e conscientes, emergindo em um novo posicionamento do personagem frente o mundo que o cerca.
Com isso, Ródion se ajoelha, beija o solo enlameado da praça, e se entrega ao seu castigo. Eis o caminho da individuação de Raskolnikov.