O Referente e o Anacronismo

O Caminho De Guermantes
4 min readJul 9, 2020

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Em nossa caminhada pela vida de estudos, encontramos, diariamente, desafios de diversas naturezas; seja pela falta de disciplina que leva — fatalmente — a uma dificuldade em consolidar o hábito de leitura e escrita, ou a falta de conhecimentos sobre conceitos elementares e prévios que certos textos nos requisitam, ou, até mesmo, a dificuldade que há na aquisição do sentido acerca de alguns termos que muitas vezes podem ser contraintuitivos. São várias as adversidades, mas há um problema que é comum a todos que desbravam o difícil caminho do autodidatismo, e que será nosso objeto de análise: a falta de relação aparente que há entre um texto escrito há séculos e a prática no nosso contexto atual.

By Giammarco Boscaro, Unsplash

É comum que alguns de nós considerem arcaicas algumas falas escritas por filósofos da antiguidade, e é normal que tomemos por “conservadores” os pensamentos de alguns autores clássicos, mas será que estamos julgando de forma correta o que lemos? É mesmo sensato desconsiderar toda a obra de um autor antigo apenas porque alguns dos seus escritos são tomados por ultrapassados nos dias de hoje? Para responder essas e muitas outras questões, devemos antes responder uma pergunta muito mais simples: qual é o nosso referente? Há no motor de nossa cultura — a linguagem — uma série de definições, normas e conceitos que nos ajudam a compreender, além da própria linguagem, o mundo em nossa volta. Como explicado por Wittgenstein, a linguagem é maior que a realidade, pois a apreende ao mesmo tempo que cria uma sistematização para a mesma. Entre esses variados conceitos, há um que mais vai nos importar durante a discussão: o conceito de Referente.

O Referente é uma condição situacional, embutida na Situação Comunicativa, que nos auxilia a criar as sintonias necessárias entre o texto e o contexto, entendendo o contexto como elemento estrutural do texto. Os referentes são divididos em: textuais e situacionais.

  • O Referente Textual

O Referente Textual diz da alteração do valor-base que uma palavra tem em decorrência de seu contexto, exemplo:

“O ouvires estimou a velha jóia da família.” (Avaliar)

“Estima os livros; tem em casa uma valiosa biblioteca.” (Apreciar)

Em ambos os casos se fez o uso da palavra “estima”, entretanto de formas diferentes, visto que no primeiro caso é apresentado com o significado de avaliação e, no segundo caso, a palavra é apresentada com o sentido de apreciação. Isso demonstra que alguns termos não podem ser entendidos isoladamente e que se deve levar em conta as relações semânticas intertextuais, assim como o valor polissêmico que cada palavra contém.

  • O Referente Situacional

O Referente Situacional é o que explica a ligação entre o texto e o contexto real, ou seja, com o mundo externo, dimensionando as ideias e valores de dado grupo, em dado período histórico. Como explica Elisa Guimarães em seu livro A Articulação do Texto, sobre Referente Situacional:

“Toma para si a tarefa de atar o enunciado às condições da enunciação — o que significa sua ligação com o universo que lhe é exterior e cujos elementos ele reconstrói. A esses elementos dá-se o nome de referentes situacionais.”

Dmitry Ratushny, Unsplash

Assim como Referente Textual muda o sentido da palavra, o Referente Situacional muda o sentido do discurso, pois o texto define-se como a recriação verbal dos dados situacionais e de seus componentes (cognitivos, sociológicos, culturais). Logo, ao ler um texto, devemos entender que o escritor pertence a outro contexto cultural e temporal, sendo responsabilidade nossa — como leitores — de ter tal discernimento e criar um esforço para encarar o texto e sua dependência à situação comunicativa, esse que é um exercício necessário para que possamos apreender em sua totalidade os sentidos e significados que um autor de séculos passados sugerem em seus escritos, pois o texto não foi escrito para nós e sim para algum receptor da época em que o texto foi produzido, logo, o autor, ao escrever, esperava criar um efeito específico em tal receptor, esse que — mais uma vez — não somos nós. Mas não é por isso que devemos desistir de textos antigos e tradicionais, pois muito dos conhecimentos produzidos pela humanidade já data de séculos e milênios, como é o exemplo dos diálogos de Platão, e para usufruir dessa sabedoria temos que suspender nosso valores (como na epoquê fenomenológica) e entender os seus referentes para que, assim, possamos fazer uma leitura distante dos anacronismos e nos permitindo evocar pensamentos do passado que ecoam pelo tempo e aplicá-los em nossa vida e rotina.

Para finalizar, é importante salientar que com esses argumentos não podemos nos conformar ou justificar discursos errôneos e preconceituosos, tendo em vista o fato de que quando lemos e discutimos uma obra, evocamos a nosso mundo os autores e, com eles, algumas ideias nocivas ou que já não mais nos servem, mas, ao mesmo tempo, não temos o direito de criar e replicar críticas vazias sobre um autor o qual sequer conhecemos o contexto histórico e cultura. Fazendo essa leitura contextual, daremos chance às venturosas boas ideias que até mesmo o mais infeliz dos homens pode conceber.

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