Os Caracteres: Arquétipos literários

O Caminho De Guermantes
4 min readAug 12, 2021

--

Teofrasto e Jung: os Arquétipos Literários na obra “Os Caracteres”

O filósofo grego Teofrasto escreveu um pequeno tratado chamado Caracteres, em que reuniu uma descrição objetiva de diversas pessoas e comportamentos comuns, denominados “tipos”. A pequena obra contém uma sequência de trinta retratos, cada um recebendo por título aquele que é o objeto da descrição: o dissimulado, o bajulador, o impudente, o enredador, o descarado, o pedante. Por mais inconsistências formais e estilísticas que tenha o opúsculo, Teofrasto fez da obra um tratado claro, ilustrativo e quase humorístico de todas aquelas figuras. Além de conter uma descrição da aparência e comportamento do “descarado”, por exemplo, os parágrafos incluem narrações de situações cotidianas em que seria possível encontrar esse tipo, e quais seriam suas ações.

Para começar, se pregou um calote a alguém, volta lá e é a esse mesmo que vai pedir dinheiro emprestado. (…) Se alguém arranja uma pechincha, ele acha-se com direito a uma parte. Dirige-se à casa alheia, a pedir emprestada farinha ou palha, e ainda exige que quem lhas empresta lhas leve a casa. (Teofrasto, Caracteres, 2014)

A leitura das descrições desperta, a princípio, um humor sutil, pela estranheza das constatações, mas principalmente uma familiaridade. Tais comportamentos, afinal, fazem parte não apenas do cotidiano dos leitores — há de se convir que pessoas mesquinhas ou bajuladoras são facilmente encontradas –, mas também do Cinema, das novelas televisivas e, principalmente, da Literatura.

Na obra “Aspects of the Novel” (1927), E.M. Forster conceituou a existência de dois tipos principais de personagens: os planos (flats) e os redondos, ou esféricos (round). Personagens planas são bidimensionais — relativamente descomplicadas — e não mudam durante a narrativa. Em contraste, personagens redondas são complexas e passam por um desenvolvimento, muitas vezes suficiente para surpreender o leitor. A lista de Teofrasto, nesse sentido, é um registro milenar de trinta — e tantos outros, contando seus derivados — personagens planas, passíveis de reprodução em milhares de obras. O insensível e antipático Ebenezer Scrooge de Charles Dickens, em “Uma Canção de Natal” (A Christmas Carol, 1843), é claramente uma reprodução, claro que sujeita à ampla criatividade do autor, do tipo “O Eterno Descontente” dos Caracteres, ou até do “Arrogante”. Ivan Ilitch, de Tolstói, está em todas as linhas do “Mesquinho” de Teofrasto. O príncipe Vassily de Guerra e Paz compartilha todas as maneiras do Bajulador.

Mas os Caracteres não são apenas estampas, modelos prontos de personagens planas. O fato de suas características manterem-se reconhecíveis mesmo após 2300 anos é algo que os aproxima dos Arquétipos junguianos. É vasta a bibliografia que trata dos “arquétipos literários”; o próprio Carl Jung fez ampla análise da Literatura, destacando-se suas interpretações de “Assim Falou Zaratustra”, além de mitos da cultura popular, lendas e poemas épicos — e numerosos discípulos o seguiram nessas análises, como Marie-Louise von Franz em seus estudos sobre contos de fadas. Mas foi o crítico literário canadense Northrop Frye quem primeiro teorizou a crítica arquetípica em termos puramente literários, na “Anatomia da Crítica” (1957), que tem como precursor o ensaio “Os Arquétipos da Literatura”.

Algumas artes se movem no tempo, como a música; outras são apresentadas no espaço, como a pintura. Em ambos os casos, o princípio organizador é a recorrência, que é chamada de ritmo quando é temporal, e padrão, quando é espacial. (…) A literatura parece ser intermediária entre a música e a pintura: suas palavras formam ritmos que se aproximam de uma sequência musical de sons numa de suas fronteiras e formam padrões que se aproximam da imagem pictórica ou hieroglífica na outra. (Os Arquétipos da Literatura, Northrop Frye, 1951)

Mesmo não tendo a profundidade mítica dos reis, sábios, criadores e heróis de Jung, os Caracteres de Teofrasto formam a reunião de características que formam identidades — definitivamente superficiais — que estão presentes em diferentes eras, localidades e circunstâncias, literárias ou não. Mais que isso, seus “tipos” refletem comportamentos e pensamentos comuns em todas as pessoas, como se carregados de inevitabilidade e vício — possuem, todos, os traços da gula, da avareza, da ira, inveja, preguiça, vaidade.

Por trás do humor ou controvérsia que podem carregar tanto a ideia quanto a execução da obra, a descrição de Teofrasto de cada personalidade não é mera invenção, mas uma constatação de um padrão. Suas personagens planas ou seus arquétipos são encontrados nos vilões e figuras secundárias ou essenciais de muitas — senão todas — narrativas ficcionais. Não obstante, são retratos do próprio homem. Mesquinhos, inoportunos, desconfiados e enredadores, os personagens esféricos da História são ilustrados nas narrativas de Tolstói, Dickens, Dante, Austen, Shakespeare, e encontram seu lugar também nas linhas de Teofrasto.

Aspects of the Novel. Nonfiction Classics for Students. . Encyclopedia.com. 16 Jun. 2021 <https://www.encyclopedia.com>

FRYE, Northrop. Os arquétipos da literatura, Tradução de Sandra Vasconcelos. Retirado de <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1903200020.htm>

TEOFRASTO,; TRAD.; COMENT. SILVA, MARIA DE FÁTIMA SOUSA E, — Caracteres. Coimbra: [s.n.]. 139 p. ISBN 978–989–26–0900–3 (PDF).

--

--

O Caminho De Guermantes
O Caminho De Guermantes

Written by O Caminho De Guermantes

Literatura | Filosofia | Psicologia | Cultura

No responses yet