Resenha: Doutor Jivago, de Boris Pasternak

O Caminho De Guermantes
3 min readJul 30, 2020

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Também a vida é só um instante,
apenas um dissolver-se,
de nós mesmos nos outros,
Como um dom que se faz.

Apenas um rumor de bodas que, debaixo,
irrompe pelas janelas,
nada além de um canto, um sonho,
uma pomba azul-cinzentada.

(Boris Pasternak)

Omar Sharif em Doutor Jivago, 1965, dirigido por David Lean.

Doutor Jivago é mais que um romance. É um retrato dos escrutínios dos tempos de guerra e um sincero apelo ao esquecido sentimento de humanidade que, como dourada fagulha dilacerante, cintila em meio ao caos. Na falha tentativa de julgar o escrito, seguem abaixo as poucas linhas de inexperientes considerações.

Como diz a praxe, há de se começar pela raiz. O livro foi lançado em 1957, apenas 40 anos depois da Revolução Russa, pano de fundo de toda a história. Tratando de suas ideias, devo dizer que foram muito bem trabalhadas. O autor se mostrou firme em sua linha de raciocínio, de modo que o enredo não se perdeu ao longo do livro, apesar de raras confusões em sua construção cronológica. Considero esse um ponto a ser notado, visto que não é tarefa simples manter a constância narrativa durante mais de seiscentas páginas. O foco do livro se contrapõe ao do filme quando se concentra na história de Dr. Jivago e da sua Rússia como nação, enquanto o segundo volta os holofotes ao romance do doutor com Lara. No livro, o ambiente se relaciona com Jivago como partes integrantes de um todo. As descrições do cenário estão sempre costuradas ao estado de espírito do personagem, de modo que seu pensamento se torna parte do mundo em que vive.

Os primeiros capítulos não são fluentes, mas frios e descoloridos. O autor deixa claro que não tem o objetivo de agradar, por isso não se usa de estratégias supérfluas para tornar a escrita cativante. Não há empatia forçada, não há envolvimento com o leitor, e sim uma exposição clara e objetiva dos quadros que compõem a história. A situação sofre alterações conforme o tecido se desenrola, quando a trama adquire caráter novelesco e os quadros parecem tornar-se vivos e nítidos, embebidos na poesia de seu autor e na sua incrível capacidade de dar cor ao acrônimo e vida à melancolia.

Esse último ponto vale um ressalto: muito conhecido por sua poesia, Boris Pasternak demonstra, nas descrições, sua notável estilística. Assim o autor escreve sobre certa manhã:

Um sol sonolento semicerra os olhinhos oleosos no bosque; o bosque espia por entre cílios de espinhos, untuosos, cintilam os raios do meio-dia. A natureza boceja, espreguiça, volta-se para o outro lado e de novo adormece.

Utilizando-se constantemente de expressivas metonímia, sinestesia e prosopopeia, sua escrita parece sempre remeter ao intangível e relembrar o leitor da natureza pura e sentimental de seu protagonista.

Sobre o aspecto histórico, nunca vi uma descrição tão pura e realista da Revolução Russa como a desse livro. Pasternak soube retratar a realidade, o sofrimento, a negligência das autoridades, as raízes dos ideais revolucionários e o reflexo deles no seu país. Não houve nenhuma apelação ao comunismo e discordo daqueles que o acusam tendencioso: não é à toa que o livro foi proibido na URSS e levou seu autor ao exílio. A censura soviética percebeu o sutil criticismo de Pasternak ao stalinismo, à Coletivização, ao Grande Expurgo e ao Gulag. Fica claro que Jivago mostrava mais preocupação com os indivíduos do que com a coletividade.

À guisa de conclusão, devo dizer que Iúri Jivago é a mais digna expressão de um caráter constante, sábio e sentimental, que ultrapassa revoluções e historicismos, e chega às nossas mãos com viés de ensinamento e lembrança da máxima dostoievskiana segundo a qual a beleza salvará o mundo. Entre coincidências previsíveis e coincidente Providência, entre longínquas conversas e trágicos fins, a poesia do doutor desconhece os limites do etéreo e passa a traduzir a mais simples percepção da vida, mesmo em circunstâncias tão terríveis.

Não deves renunciar a um mínimo
pedaço do teu ser,
Só estar vivo e permanecer
Vivo, e viver até o fim.

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