Retratos de uma Vida Comum
Será que a Literatura é feita apenas de fatos extraordinários?
Um dos motivos pelos quais a leitura dos grandes clássicos é tão importante é a sua incrível capacidade de nos fazer viver aquilo que nunca, em circunstâncias normais, poderíamos viver. Mas será que só de experiências extraordinárias é formada a Literatura?
Quando paramos para pensar na infinidade de experiências que fazem parte da constituição da “Humanidade”, como um ente abstrato e universal, percebemos que os seres humanos passam por situações únicas, absolutamente singulares, como a fome, o luto, a dor física, moral, a saudade imensa e a alegria inexplicável. E muitas vezes essas situações estão inseridas em circunstâncias passadas e também únicas — a Segunda Guerra Mundial, por exemplo — que tornaram-se, naturalmente, para sempre inacessíveis para nós. Ou seja: para conhecer essas experiências e poder agregá-las ao nosso entendimento da vida humana, e ter uma visão mais clara de nós mesmos e das pessoas que nos cercam, é preciso ler. Essas experiências nós podemos encontrar não somente na Literatura clássica, mas também nas biografias. São centenas de histórias incríveis, escritas com uma sensibilidade e precisão inigualáveis, às vezes por um biógrafo especializado, às vezes pelo próprio sujeito.
Mas na vida da maioria das pessoas, não há e nem haverá guerras mundiais, ou fome, ou acontecimentos extraordinários, nem aventuras ou jornadas heróicas. Não seremos um gênio, não descobriremos uma mina de ouro, nem inventaremos uma tecnologia inovadora, nem mudaremos o mundo. Alguma coisa diferente, aqui e ali, uma surpresa inesquecível, um milagre, talvez, quem sabe, um dia. Mas a vida real, essa que conhecemos hoje, essa que nos faz levantar todos os dias, é ela que acontece e é dela que nos lembraremos no futuro. A preguiça ao acordar, o café, as dores, o ônibus, o trabalho, o “bom dia”, o “boa tarde”, as pessoas na rua, a louça na pia, o cachorro latindo. É o que temos hoje, é o que teremos amanhã, e deve ser essa a fonte primária não somente dos nossos escritos, mas da biografia que se constrói todos os dias e que um dia poderá estar em um livro.
Como falar, então, dessas questões que parecem não ter nenhuma importância? São duas as maneiras, e há Literatura em ambas. Em primeiro lugar, devemos ter um olhar atento. Instalar-se na realidade. Isso significa não desprezar o ordinário, mas transformá-lo, por um exercício de atenção, em algo extraordinário. É esforçar-se por ver as coisas da mesma forma como um estrangeiro vê uma nova cidade. Ouvir os pássaros como se nunca os houvesse ouvido, reconhecer a Beleza que há escondida nos sons da natureza. Sentir o cheiro do café como se fosse a primeira vez, cumprimentar alguém colocando verdade em todas as palavras, desejando verdadeiramente que ela tenha um dia bom e uma tarde agradável, como se as desejasse para si mesmo. Esse estranhamento voluntário, esse fluxo de consciência um pouco Proustiano e essa forma romântica de ver o cotidiano, é um dos fatores principais da instalação da realidade, somado do realismo quase pessimista que há na aceitação de que ser é agir, e de que só se age no presente.
A segunda forma de usar esses acontecimentos banais do cotidiano é reconhecer em todos eles uma linha narrativa. Por trás de toda atividade diária, é preciso haver quase que inconscientemente a noção de que, se um dia você puder escrever uma autobiografia, ela será feita de milhares de pequenas biografias, centenas de histórias comuns que de alguma forma contribuíram para sua formação. E seja de forma escrita ou não, o tempo passa; e o que é normal para você, hoje, será uma lembrança distante, no futuro. Entender a vida como uma grande história que daqui a muitos anos poderá estar em um livro, é entender o dia como uma pequena história — que pode, aliás, estar em um diário — e ter para a soma das ações comuns do dia-a-dia uma visão geral, abrangente.
Como diria Milton Nascimento, de tudo se faz canção. Como? Por deslumbramento e narrativa. O conjunto dessas duas perspectivas são, na verdade, um treino da nossa capacidade de escrita, seja ela concreta ou não. Para ter uma boa história de vida para contar no futuro ou para reunir reflexões variadas em um caderno, não é necessário procurar por temas complicadíssimos e recorrer aos mundos fantásticos. A vida é isto aqui, e o dia é nossa principal fonte de inspiração. No fundo, nós estamos sempre escrevendo, com ou sem um lápis e um papel na mão. E no fim, é esse nosso cotidiano parco, ordinário e comum que será, de uma forma ou de outra, nossa biografia.