Sobre “A Vida Intelectual” de Sertillanges
Aqui vão alguns comentários acerca da minha experiência com a leitura de “A Vida Intelectual” do padre A. -D. Sertillanges. Tentarei não alongar muito esse texto pois acredito que a leitura da própria obra é muito acessível a qualquer um que queira adentrar a vida de estudos, e ainda mais serena para quem já está nela há algum tempo. Acredito que duas circunstâncias específicas podem fazer você estar lendo este ensaio. A primeira, caso você esteja buscando textos e livros que falem sobre a vida de estudos, trazendo reflexões sobre o porquê ler, como fazê-lo, que ordem de estudos seguir, ou qualquer inquietação que surja nessa divisa de territórios, mas que deve ser respondida por você mesmo ao curso da aquisição do próprio repertório. A segunda, caso você já tenha realizado o estudo da obra e esteja buscando novas análises e comentários para complementar o que foi internalizado nos momentos de leitura ou decorridos de suas reflexões. De qualquer forma, nesse texto pretendo abarcar ambos os públicos, me direcionando devidamente a cada um deles.
“A Vida Intelectual” aborda, como pode-se imaginar pelo título, os elementos que envolvem e participam de uma jornada vitalícia de estudos. Ele é, ao mesmo tempo, um guia que vai te mostrar alguns detalhes do caminho que você está percorrendo e te auxiliar acerca das dificuldades e métodos desse percurso, bem como uma centelha que irá inflamar seu ímpeto por experienciar intensamente a paisagem, o clima e as maravilhas naturais que se mostram e afetam sua razão de ser ao longo dessa trajetória. Por esse motivo, é um livro universal: não é necessário uma bagagem literária e filosófica imensa para se extrair a mensagem do livro. Mesmo assim, muitos que já se encontram avançados em seu percurso intelectual podem com essa leitura rejuvenescer suas principais aspirações e convicções na vida dos estudos, oxigenando novamente a brasa da constante busca pela Verdade.
Em termos de estrutura, o livro fala principalmente sobre 3 tópico“A Vida Intelectual” aborda, comos da vida intelectual, dos quais são o próprio subtítulo do livro: “Seu espírito, suas condições e seus métodos”.
Dentro desses tópicos, Sertillanges mostra diversas noções e pensamentos explicativos desses fatores, bem como suas aplicações práticas e diretas, com o intuito de auxiliar o seu leitor. Ao argumentar acerca dos métodos para a vida intelectual, por exemplo, o autor nos mostra as diferenças do trabalho matinal com o trabalho noturno, bem como dos cuidados que devemos ter com os períodos de descanso. Aqui, temos um argumento interessante: Sertillanges nos mostra que o descanso do intelectual deve ser restaurador e não meramente relaxante, como se pode pensar.
Ele nos adverte contra o gasto desenfreado das energias que se enquadra nos atos que consideramos “relaxantes”. Costumamos pensar no descanso como um escapismo do próprio espírito de suas atividades laborais e nos “soltamos” em atividades, ditas de lazer, que em realidade são contraproducentes. Deixarei suas próprias palavras explicarem essa diferença:
“Com efeito, relaxado, é assim que se fica, mas da mesma forma que o violino que estivesse com todas as cordas totalmente frouxas. Que trabalho, no dia seguinte, para afinar tudo de novo! (…) O repouso não pode consistir na dispersão das forças. O repouso é uma retrogradação para longe do esforço, em sentido a suas fontes; é, pois, uma restauração, não um gasto tresloucado.”
Eis um exemplo ilustrativo do que o autor faz durante toda a obra: ele nos explica a importância do assunto (nesse caso, do descanso, do sono de qualidade, antecipando muito do que conhecemos hoje como higiene de sono) e nos dá exemplo de como podemos, de fato, aplicar essas noções na nossa vida de estudos (nesse exemplo, reservar um tempo de verdadeiro descanso, revigorante como ele precisa ser). Obviamente, muitas situações são abordadas pelo autor em sua obra, e muito mais você pode absorver ao banhar-se na própria fonte. Trouxe apenas um exemplo para introduzir o livro ao primeiro público que mencionei no início do texto. Agora, irei me direcionar ao segundo público.
- Primeiro: o autor nos mostra que a vida intelectual está intimamente ligada à vida prática. Para ele, a própria Verdade é prática. Ele enfatiza que o intelectual não deve ser isolado da sociedade, e descarta a possibilidade da “tendência arqueológica”, que é o amor saudosista pelo passado, ignorante da presença atemporal de Deus. Dessa forma, ele nos mostra que a vida intelectual é muito mais do que ler livros e escrever ensaios filosóficos. Isso qualquer ser humano com seus devidos conhecimentos da língua e com seu aparato cognitivo razoavelmente funcional pode fazer. A vida intelectual é uma postura na qual o homem encara a realidade, interage com ela e deixa-se envolver no movimento dialético onde ele a transforma ao passo que também é transformado por ela. É uma atuação prática, como foi dito, pois nos direciona a agir perante a realidade, e é uma virtude, visto que essa busca nossa aproxima do Bem e da Verdade. Como ele mesmo comenta:
“As grandes intuições pessoais, as iluminações penetrantes provém, em igualdade de valor, do aperfeiçoamento moral, do desapego de si e das banalidades habituais, da humildade, da simplicidade, da disciplina dos sentidos e da imaginação, da entrega à busca dos grandes fins”
- Segundo: na prática, podemos ter contato com a obra Divina, mas nunca alcançaremos a Verdade por completo, esse é o mistério ao qual ele se refere: tudo que não conseguimos alcançar, sendo humanos. Aqui, ele evoca o argumento do, diversas vezes citado ao longo do livro, Padre Gatry, sobre a lógica viva, que é o desenvolvimento do nosso espírito por seu contato com o Verbo Divino. Ou seja, ao ter o vislumbre das grandes mensagens e símbolos que são passados pelos textos atemporais, colhendo a herança dos séculos (palavras de Sertillanges), nos aproximamos das Verdades que carregam em si a redenção da alma.
- Terceiro: esse movimento nos torna profundos contempladores da vida e nos liga espiritualmente com o pensamento e a emoção universal, quanto mais nós a buscamos. Isso quer dizer que a transformação que ocorre por conta da vida intelectual amplia nossa percepção da realidade e das possibilidades que criamos naturalmente em nossa imaginação. Sertillanges afirma que “Todo estudo é um estudo da eternidade”, e nada mais transformador do que ter acesso e tomar consciência do que é comum ao ser humano em qualquer época e em qualquer cultura: nossa própria condição de existência.
Irei ressaltar aqui um ponto que é defendido pelo Sertillanges, apenas para atiçar o leitor desse texto: comece a escrever! Tente não limitar o ato de escrever como compor um romance, ou redigir o próximo poema épico. Simplesmente, faça registros de suas leituras, com suas próprias palavras. Não precisa, necessariamente, reproduzir o pensamento do autor, a não ser que a intenção dessa escrita seja para maior compreensão de todo um sistema filosófico que envolve a obra. Escreva o que você pensa ao longo da leitura. Registre as informações importantes, escreva seu entendimento das analogias, das intervenções do narrador, das mensagens implícitas e das falas dos personagens, grife e sublinhe frases e parágrafos, mas escreva! Isso vai te engajar mais com a obra, além de fixar melhor as ideias para que você tenha a estrutura de compreensão necessária para refletir sobre os conteúdos apreendidos com mais propriedade. Apesar disso, esteja atento que sempre haverá mais do que a sua própria interpretação pôde captar acerca do que foi lido. Escreva e interprete da sua forma, passe por esse processo com seu foco intelectual e espiritual, mas não pense que essa é toda a realidade do texto e do mundo, e tenha consciência dessa inevitável limitação. Grandes autores de grandes textos já estão mortos, e você não terá a possibilidade de confirmar suas hipóteses em todos os casos. Aproveite o mistério que Sertillanges se refere e que várias vezes eu falei nesse texto. Perceba a lacuna, as ambiguidades, e não pense que isso é uma imperfeição humana indigna, execrável. Faz parte da nossa condição. Citando novamente o autor:
“Já não se trata aqui de demonstrar sua habilidade, de fazer brilhar suas aptidões como jóia rara. O que se quer é entrar em comunicação com a origem da luz e da vida;”
Então, leitor, se você chegou até aqui, acredito que tenha lido boas razões para ir ler “A Vida Intelectual”. Portanto, despeço-me com outra citação de Sertillanges:
“É preciso abordar o trabalho munido da constância que se mantém pronta para produzir, da paciência que suporta as dificuldade, da perseverança que evita o desgaste do querer.”