Três Círculos Kafkianos
Toda vida humana, possui, em menor ou maior proporção, um elemento estranho, causador de uma espécie de náusea existencial. A Angústia, definida em termos Heideggerianos, é o sentimento causado pela nossa própria consciência. Ao sermos conscientes da nossa condição, inevitavelmente teremos uma cascata de reflexões relativas ao sentido da vida, liberdade, valores, e tudo que o humano pode construir simbolicamente. É nossa resposta afetiva frente à existência. A partir dela podemos responder ativamente na construção do nosso próprio Ser-no-mundo. Assumimos a responsabilidade por nós mesmos, pelos entes simplesmente dados e pelo outro. Como lidar então, com um autor que balança essa frágil estrutura e simbolicamente a desmorona? Este é Kafka.
Outros autores têm projetos semelhantes, ou tão desconfortáveis para o leitor quanto Kafka. Poderíamos citar Camus, Zola em um certo nível, ou até Céline. Mas talvez em algum outro ensaio eu tente falar sobre eles em conjunto. Por hora, centremo-nos nessa anomalia literária que foi Franz Kafka.
Acho que apesar das diversas obras, um bom ponto inicial seria a tríade kafkiana. “A Metamorfose”, “Carta ao Pai” e “O Processo”. Apenas nestas três obras já compreendemos o peso dos escritos do autor. Gosto de pensar que cada uma atua em círculos concêntricos maiores ou menores dentro do conjunto que é a existência. No círculo maior, temos as afetações da macroestrutura na vontade de poder do indivíduo, representada em “O Processo”. E em um círculo menor, temos os relatos de desreguladas e prejudiciais relações familiares em “Carta ao Pai”. Por fim, no círculo mais específico, temos o estranhamento individual do homem com sua própria forma, em “a Metamorfose”.
Minha anterior comparação com Zola não foi por acaso. Acredito que o projeto naturalista de Zola nos empurra da cadeira na qual estamos lendo para cairmos na lama que é a realidade das nossas emoções mais primitivas. É uma imersão no âmago da nossa agressividade, dos nossos instintos sexuais, da nossa ira, ciúme, e todo o arcabouço biológico que nos aproxima de animais irracionais. Com Kafka, sofremos o mesmo empurrão, mas caímos em outra lama. Podemos dizer que caímos em uma lama simbólica.
O choque que levamos ao ler Kafka é ao encararmos as representações das coisas. Estranhamos a representação do Pai que logo se transforma em uma representação da Repressão. Estranhamos a representação da Lei, que logo se transforma em uma representação da Repressão. E acabamos estranhando a nossa auto representação neste meio de Repressão, que logo nos transforma em insetos.
Em Kafka, a Angústia Heideggeriana é um complexo de inferioridade. O eu lírico nunca dispõe de real liberdade para definir as bases da própria existência. Ele é sempre cercado por uma entidade, semelhante a uma instituição total, percorrendo eternamente um labirinto monocromático, sem nenhum auxílio externo, sem nenhum conforto do mundo. Sua posição afetiva frente à existência é completamente negativa, sempre inquietante e simbolicamente torturante.
Começando a análise pela obra “A Metamorfose”, nos deparamos com um dos pilares na obra kafkiana: a estranheza consigo mesmo. O eu lírico, não apenas nesta obra, mas mais evidente nela, é alheio ao próprio corpo, à si próprio. Ao acordar, sem explicação nenhuma, transformado em um inseto, Gregory evidencia esse pilar. Com a leitura de “Carta ao pai” e conhecendo um pouco mais da história de Kafka, a forma asquerosa com a qual Gregory percebe seu corpo ganha outro significado. Não estamos falando mais de um homem que misteriosamente se transformou em um inseto, como se isso fosse um fato concreto. Estamos falando de uma elaboração metafórica usada para ilustrar um sentimento do autor. Elementos alegóricos são constantemente usados por ele. É bem-vindo traçar um paralelo com a psicanálise para explicar esse fenômeno. Em “Estudos sobre a Histeria”, Freud propõe a conexão entre sintomas físicos de suas pacientes e sentimentos inconscientes relacionados a sua história e ao disparo de suas histerias. Sentimentos de repúdio moral eram geralmente relacionados a vômitos, como uma tentativa inconsciente de fisicamente externar uma ideia recalcada. A relação entre as metáforas kafkianas e suas respectivas origens subjetivas se dá de forma semelhante. Retornando ao caso de Gregory, a estranheza do personagem com sua condição física se mostra também como reflexo do sentimento do autor com seu próprio corpo, explicitado muitas vezes no livro “Carta ao Pai”. O complexo de inferioridade também dá as caras nessa relação, uma vez que Kafka era um garoto magro e fraco que era sempre humilhado em comparação ao seu pai, um homem robusto e vigoroso. Revela ainda mais profundo ao longo do livro, principalmente no diálogo com o padre, ao final do romance. O que não falta por aí são análises, se não equivocadas, ao menos desfocadas, sobre quem são essas entidades. Acusam a morte de Gregory como aniquilação capitalista de um ser que não é capaz de produzir. Acusam também o processo de Joseph K. como meras relações de poder, de imposições disciplinares…
Para não deixar o título do texto sem conclusão. Talvez o gênero ensaio me seja tão precioso por dar a oportunidade de expor um ponto, sem necessariamente excluir outros, e deixar outros aspectos para outros textos ou reflexões dos leitores. Mas sendo conivente com essa limitação, e coerente com o que elucidei ao longo do texto, acredito que Kafka nos transmite a agonia, a aflição e o desespero de se estar em um mundo repleto de imposições e relações incompreensíveis no humano. Ele nos transporta para o subsolo da humanidade, onde a luz não chega e os vermes se satisfazem. Antecedente do absurdismo de Camus, Kafka nos mostra o que há de irracional na existência e como ela nos afeta existencialmente. Ele perverte a Angústia Heideggeriana e nos restringe as ferramentas usadas para a construção do nosso Ser. É a partir de leituras como essa que podemos absorver o desumano e fortalecer nossa humanidade.