Uma Dose de Atenção aos Escritores
por Ivan Barros dos Santos Júnior¹
Quem se dedica aos trabalhos de natureza intelectual, ao labor que mais exige a profusão das atividades cerebrais que a boa disposição física, sabe da necessidade que há de ser desenvolvida a capacidade de estar absorto, de esquecer-se do que acontece mundo afora e deixar-se levar pela profundidade do pensamento. Muitas são as distrações que perturbam nossa alma quando nos debruçamos sobre os livros, quando começamos a trabalhar; inúmeros são os estímulos que nos assolam, impelem-nos a levantar da cadeira e deixar de lado o que nos propusemos a fazer. Importa sobremaneira a disciplina da atenção.
Neste sentido, Louis Riboulet² elabora uma analogia deveras pertinente. Diz ele: [A atenção] é para a consciência o que a concentração da pupila é para a vista.³ Agora suponha que você esteja observando uma paisagem no campo. Imagine quão terrível seria lidar com a incapacidade de atentar-se aos elementos que a compõem. As árvores, as nuvens, os pássaros, os trabalhadores do campo, os animais, o riacho que se apresenta ao longe; tudo não passa de um lamentável borrão — de fato é o que experimentam aqueles que carecem da plena saúde ocular, como este que vos escreve, embora em pequena parcela.
Que quero dizer com isso? Está mais do que evidente ser a atenção imprescindível ao bom resultado do trabalho intelectual. Mas não se limita a isso minha exposição. Eis o que pretendo lhes apresentar: dentre os que iniciam na escrita literária, acaba-se por se dar demasiado valor à imaginação em detrimento da habilidade de ser um perspicaz observador da realidade. Aqueles que se dedicam à escrita reputam ser de extrema relevância a descrição de histórias mirabolantes, acontecimentos incríveis, personalidades nunca conhecidas, situações jamais vivenciadas, lugares em que seus pés jamais pisaram. Às vezes não é isso que se espera de um bom escritor.
Vide a carta redigida por Graciliano Ramos à sua esposa, Heloísa Ramos, em 7 de maio de 1937:
“Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra, um troço difícil como você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma duma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás. Exatamente o que todos nós desejamos. A diferença é que eu quero que eles apareçam antes do sono, e padre Zé Leite pretende que eles nos venham em sonhos, mas no fundo todos somos como a minha cachorra Baleia e esperamos preás. É a quarta história feita aqui na pensão. Nenhuma delas tem movimento; há indivíduos parados. Tento saber o que eles têm por dentro.” ⁴
É visível a simplicidade com que ele lhe explica o enredo. A singeleza de sua explanação parece ser justamente o que a adorna, singeleza essa que se faz presente não apenas na carta, mas em sua própria obra. Em verdade, se pudermos melhor notar, a despretensiosidade da narrativa em Vidas Secas e sua particular lentidão remetem à languidez do êxodo da família que protagoniza a trama.
São simples as palavras como são simples os episódios narrados e, no entanto, o conto que desembocou em Vidas Secas nos dá de presente uma história riquíssima em termos de estampar uma verdade social pela qual tantos Fabianos passaram e ainda passam na companhia de suas famílias — e seus animais. Aguçado o exame de Benjamin Abdala Junior quando diz: Fabiano veio a ser reduzido, do ângulo de sua autoconsciência, a um animal, enquanto sua solidária cachorra Baleia, ao contrário, se humaniza.⁵
Os fatos da vida podem ser, por outro lado, extraordinários. Quando se pensa na maestria com que Dostoiévski retrata as durezas da vida, frustrações, a redenção do homem e o tema da morte, não há como esperar menos do escritor, que suportou tantos dissabores e reviravoltas. Dívidas contraídas pelos vícios em jogos de azar, crises de epilepsia e uma sentença de execução por conspiração política foram apenas algumas dificuldades — soa até como eufemismo — pelas quais passou um dos maiores nomes da literatura russa.
Em particular, da condenação a execução, Dostoiévski escapa por muito pouco. Eis um trecho do que escreve a seu irmão Mikhail:
Hoje, 22 de dezembro, fomos levados à praça de armas do regimento Semeónovski. Ali foi lida para todos nós a sentença de morte, deram-nos a cruz para beijar… e prepararam nossos trajes para a morte (camisões brancos). Em seguida prenderam três aos postes para a execução da sentença. Chamavam de três em três, portanto eu estava na segunda fila e não me restava mais de um minuto de vida. Eu me lembrei de ti, meu irmão, de todos nós três; no último minuto tu, só tu, estavas em minha mente, e só então fiquei sabendo como te amo, meu irmão querido! Tive tempo de abraçar também Pleschêiev, Dúrov, que estavam ao lado, e despedir-me deles. Por fim bateu o sinal, fizeram voltar os que estavam presos aos postes, e leram para nós que sua majestade imperial nos dava a vida. […] Em minha alma não há fel nem raiva, gostaria de amar muito e abraçar ao menos alguma das pessoas de antes neste momento. Isso é um deleite, eu o experimentei hoje ao me despedir dos meus entes queridos perante a morte… Quando olho para o passado e compreendo quanto tempo perdi em vão, quanto perdi com equívocos, com erros, na ociosidade, na inabilidade para viver, como deixei de apreciá-lo, quantas vezes pequei contra meu coração e minha alma, meu coração se põe a sangrar. A vida é uma dádiva, a vida é uma felicidade, cada minuto poderia ser uma eternidade de felicidade.⁶
Como se pode sofrer semelhante aflição e não admitir uma nova postura frente aos acontecimentos da vida? Tudo se torna interessantíssimo e digno de plena atenção. Se inteligente, o sujeito deixa de observar as coisas, pessoas, eventos como antes. Começa a considerar novos pontos de vista que podem destruir ou corroborar suas conclusões anteriores acerca dos mais variados assuntos. E destrua ou corrobore, os aprendizados só conduzem a um caminho: o enriquecimento da experiência humana. E que sorte a nossa é desfrutar de determinadas epifanias pela leitura e experiência alheia, sem que tenhamos de nos submeter a semelhantes sofrimentos que tantos gênios vivenciaram.
Certa feita um aluno retrucou ao professor Rodrigo Gurgel:⁷
— Mas professor, eu não tenho condições de me tornar um bom escritor, minha vida é muito pacata!
A isso o professor respondeu, como sempre, de maneira muito bem-humorada:
— Não, meu caro, você não compreendeu em que consiste a arte da escrita. É justamente descrever a pacatez de sua vida com a genialidade que lhe cabe.
Ora, não direi eu, que disponho de uma memória bem pouco prodigiosa, foram essas as exatas palavras do aluno e do nobre professor, mas estou certo de que preservei a quase exata substância do diálogo.
O caso é: sejam os fatos da vida do escritor ordinários ou extraordinários, aproveita-se tudo que está ao alcance de sua observação; nada é supérfluo. Veja, assim é a vida de quem não é capaz de concentrar-se nos fatos que lhe ocorrem. É tudo um vulto! Nada o intriga, nada lhe exige explicação, nada o cativa. É um ser indolente, completamente insensível à realidade. As grandes descobertas estão nas coisas cotidianas.
Não passam de reflexões sobre os fatos comuns a todos. Passaram-se milhares de vezes sem nada ver, e um dia, o homem de gênio observa os laços que atam àquilo que ignoramos (o que está sob nossos olhos a cada minuto), diz o Pe. Sertillanges.
E a história das descobertas confirma amplamente estas palavras. Antes de Galileu observara-se perfeitamente bem o movimento dos corpos suspensos; mas ele foi o primeiro a tirar conclusões disso. Uma lenda conta que foi a queda de uma maçã que colocou Newton no caminho das descobertas imortais. Quer dizer que ninguém antes dele tinha visto maçãs caírem? A primeira ideia de um túnel sob o Tâmisa foi dada a Brunel por um pequeno inseto que, perfurando a madeira com um trado minúsculo, conseguiu abrir passagem através de um tronco de árvore. A maior parte das descobertas de Claude Bernard, de Pasteur, de Fabre tiveram por ponto de partida o seu maravilhoso faro de observadores.⁸
A nota acerca da atenção não se reduz, portanto, à atenção indispensável ao trabalho intelectual, aos estudos ou ao exercício da escrita, mas atenção sobretudo perante o mundo! As descobertas científicas acima citadas servem de analogia para as descobertas que podem ser feitas no campo das relações intersubjetivas, nas esferas de amizade, inimizade, amor, guerra, na seara das ciências humanas, na música, nas artes em geral, na reinterpretação de fatos históricos; as terras inexploradas são vastíssimas.
Na arte da escrita todos precisamos submeter a matéria bruta de nosso conhecimento a uma espécie de garimpo. Porém, para filtrar o que há de melhor de nossas aquisições cognitivas há que se ter o que filtrar. Ninguém pode escolher as duas melhores maçãs do cesto se duas são todas as maçãs que o cesto possui. Essas importantes impressões, que serão posteriormente filtradas pelo artista, são adquiridas mediante a acurada observação do real.
É evidente que essa lucidez, essa aptidão de estar atento ao real se obtém com a prática, com o treino. Deve ser buscada incessantemente. Do contrário, vê-se tudo e não se vê nada; passa-se pela vida sem a mínima cordialidade de lhe prestar a lisonja que merece.
Notas:
¹ Bacharelando em Direito pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte — UNIRN. Membro coordenador do Students for Liberty no Brasil e presidente do projeto Academia de Escritores.
² Louis Riboulet (1871–1944). Professor de filosofia no Colégio de Notre-Dame de Valbenoîte, em SaintÉtienne. Escritor de várias obras sobre educação além de ter escrito em diversas revistas francesas à época.
³ RIBOULET, Louis. Conselhos sobre o trabalho intelectual. P. 104. 1ª ed. Campinas, SP. Editora Kírion. Junho de 2019. Título original: Conseils sur le travail intellectuel. Os direitos desta edição pertencem ao CEDET — Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico.
⁴ RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. P. 3. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2018.
⁵ Ibid. p. 12.
⁶ DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O Idiota. P. 12 a 14. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2015.
⁷ Professor de literatura e escrita criativa e crítico literário brasileiro. Autor de Esquecidos & Superestimados, Muita retórica — Pouca literatura (de Alencar a Graça Aranha) e Crítica, Literatura e Narratofobia.
⁸ RIBOULET, Louis. Conselhos sobre o trabalho intelectual. P. 109. 1ª ed. Campinas, SP. Editora Kírion. Junho de 2019. Título original: Conseils sur le travail intellectuel. Os direitos desta edição pertencem ao CEDET — Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico.